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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Os degredados filhos de Eva

Dogmas acrescentaram mais facetas como a concepção sem mancha e a assunção aos céus

Atualização:

Algumas orações possuem texto além da compreensão das crianças. Quando pequeno, rezava o Salve-Rainha e chegava ao trecho de intitular a mim e a todos os humanos como “degredados filhos de Eva”. Não tinha a menor noção do verbo degredar e desconhecia a teologia básica do Pecado Original. Estranhava, inclusive, chamar Maria de mãe logo ao início da oração e, logo em seguida, reconhecer-me filho de outra mulher, Eva. Pior: sendo filho de advogado, perguntava-me que Maria fosse “advogada nossa”. Padre Alexandre, que me preparou para a primeira comunhão, tentou explicar minha angústia sobre a dupla maternidade. O bom jesuíta assegurou-me: “Fomos condenados por Eva e salvos por Maria”. Assenti sem compreender. Desisti de especular sobre os mistérios da fé pelo resto da infância. 

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Já mais apto a considerações complexas, dediquei-me muito à Mariologia, o estudo católico sobre Maria. Encantei-me com a beleza da anunciação, o silêncio da mulher a guardar tudo no coração, a angústia no Templo, a intercessão nas Bodas de Caná para obter o primeiro milagre de Jesus, a dor do Calvário, o recebimento de João como filho em meio ao horror do Gólgota, a alegria da ressurreição e, por fim, a presença dela no ato fundacional de Pentecostes, origem da Igreja.

Dogmas acrescentaram mais facetas como a concepção sem mancha e a assunção aos céus. A arte consagrou uma cena magnífica: Maria coroada pelo Filho no último empíreo. O Magnificat do Evangelho de Lucas e a Ladainha de Nossa Senhora ainda habitam minha memória. Meu pai era devoto de Nossa Senhora do Caravaggio, minha mãe tinha uma imagem de Aparecida e eu me dividia entre Nossa Senhora do Carmo (por causa das promessas e do escapulário), Nossa Senhora da Defesa para proteção contra o Maligno, a Imaculada Conceição (orago da matriz da minha cidade São Leopoldo), um ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e a Virgem de Lourdes por causa de uma gruta no meu colégio com a imagem dela. O rosário era minha companhia em todas as noites.

A cada 13 de maio eu cantava forte a rima entre a cova da Iria e o nome de Maria para celebrar a aparição em Fátima. Na primeira vez que contemplei a Pietá na Basílica de São Pedro, chorei muito. Beleza e solidão, fé e dor tornadas mármore: a Virgem das dores, jovem e pungente, estava ali. Ao final das tardes, na capela do colégio São José, a irmã Eloísa tocava harmônio (instrumento que vim a aprender) e eu cantava o Lembrai-vos de São Bernardo (Memorare). A luz dos vitrais azuis descia e a beleza da arte e da música era a minha experiência de Deus. Como catequista e sacristão, como estudante jesuíta e ministro da Eucaristia, eu considerava minha missão levar todos a Jesus por meio de Maria. No último dia de maio, coroávamos a imagem da Mãe de Deus com hinos e procissão. Como comentei com o padre Fábio de Mello, talvez eu nunca tenha sido um bom cristão, porém, com certeza, fui muito católico. Entendia muito da liturgia e sabia muitos cantos sacros de cor (por tocar na igreja). Porém, do ponto de vista dos valores existenciais cristãos, minhas falhas eram graves.

Passaram-se muitos anos. Deixei de rezar, não frequento igrejas a não ser por formalidade social, fui me desfazendo das imagens sacras que eu tinha. Continuei a me dedicar aos estudos de religiões como objeto, sem compartilhar a transcendência dos temas. Adoro visitar igrejas e decifrar seus signos. A fé se foi, sem nenhuma decisão clara ou uma espetacular queda a caminho de Damasco. Simplesmente, a voz que eu ouvia em oração se calou e nunca mais consegui crer que houvesse algo além da minha consciência solitária. Percebi sempre que a oração acalmava os aflitos, diminuía a dor, fortalecia disposições e tantas coisas mais.

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A leitura psicanalítica foi desvendando em mim o mecanismo terapêutico que se projetava na ideia arquetípica da mãe plena de afeto no céu e de um Sumo Bem a velar por todos. Nunca escarneci de quem buscava Deus na angústia, apenas reconhecia que já adquirira suficiente consciência para não lançar mão dos recursos metafísicos. Reforço que a experiência descrita é só minha, sem nenhuma pretensão da universalidade ou de catequese ateia. Tal como pensava Nietzsche, a morte de Deus em mim não me enchia de alegria, pelo contrário, suscitava melancolia. No fundo, eu adoraria que Deus existisse. Amaria ter a certeza de que hoje, no Dia das Mães, a minha mãe está bem e feliz, olhando-me do Paraíso. A solidão da orfandade poderia diminuir, o vazio seria mais suportável, a dor menos lancinante se eu supusesse e acatasse a lógica advinda da onisciência divina.

Haveria um alfa e um ômega, um vetor, uma direção e eu creria no propósito de todas as coisas. Vivi a beleza e desfrutei a orientação de muitos bons mestres, padres e freiras. Nunca houve uma decepção notável com a Igreja além daquela que eu possa ter com minha família ou colegas: alguns excepcionais e outros nem tanto. A fé católica e ultramontana do meu pai nunca fraquejou. A certeza metafísica da minha mãe manteve a luz da esperança até o último instante. O luto pelo Deus que morreu é por tudo isso. É outra orfandade. Talvez seja este o sentido que o padre Alexandre falhou em me explicar: somos filhos exilados anelando por mães terrenas e celestes. Com consciência ou não, somos todos degredados, do ventre de Eva e do manto de Maria. Feliz Dia das Mães a todos neste vale de lágrimas e de sorrisos. 

Opinião por Leandro Karnal
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