Os ciclos da dança

Discípulos de Bertazzo criam 'Grão', que tem pré-estreia na periferia da cidade

PUBLICIDADE

Por Flavia Guerra
Atualização:

Um grupo de bailarinos urbanos, em que uma psiquiatra contracena com um engenheiro, que dança ao lado de um arquiteto, que divide a cena com uma manicure da periferia de São Paulo, que cria seus movimentos em parceria com um advogado. São heterogêneos, mas harmônicos. E todos se misturam no palco em um espetáculo que revela a semente de cada um desses dançarinos não profissionais que encontram no movimento não só sua veia artística, mas o caminho para se tornar um cidadão dançante. Assim é Grão, espetáculo que estreia na próxima quinta, dia 12, no Teatro Geo (Rua Coropés, 88), onde fica em cartaz até dia 15. Antes, tem pré-estreia no CEU Campo Limpo, amanhã. O caminho do espetáculo, da periferia da cidade para um dos teatros centrais, já com tradição em espetáculos de dança, diz muito sobre o caminho percorrido pelos criadores de Grão: Sergio Ignacio e Rubens Oliveira. O primeiro é jornalista e psicanalista e, o segundo, coreógrafo e bailarino, Ignacio nasceu e cresceu em região nobre da cidade e cuidou da comunicação de diversos espetáculos do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, o criador do método que leva seu nome, do final dos anos 1990 até meados dos anos 2000. Nesse tempo, passou de comunicador para também bailarino de diversos projetos. Já Oliveira nasceu no Espírito Santo, mudou para o Campo Limpo aos 12 e conheceu a companhia de Bertazzo aos 18, em 2003. Nos anos seguintes, passou de aprendiz do projeto Dança Comunidade a assistente do diretor e, depois, se tornou coreógrafo profissional. Como manda a dinâmica do método (que prevê, entre outras, a transformação do cidadão comum em cidadão dançante e que também trabalhou a dança como instrumento de inclusão social), Ignacio e Oliveira, apesar de suas formações tão distintas, encontraram-se no palco em 2006, quando ambos integravam o corpo de Anatomia do Desejo, de Bertazzo, e viraram amigos. Anos depois, a amizade transformou-se em vontade de construir algo em conjunto. Criaram o projeto Chega de Saudade, cujo primeiro espetáculo nasceu em 2012. Carretel passou pelo palco do Tuca (Teatro da PUC) com plateia lotada e aprovação de público e crítica.Grão é o segundo espetáculo concebido pela dupla e, assim como seus criadores, traz na mistura de origens de seu elenco uma de suas grandes forças. "Gostamos muito de como um dança, de como o outro se expressa... Queremos compartilhar isso e, assim como fez Bertazzo, formar cidadãos dançantes", conta Rubens, que foi descoberto pelo diretor em um processo de seleção que escolheu diversos jovens de ONGs da periferia paulistana. A que Oliveira integrava era justamente o projeto Arrastão, no Campo Limpo, que hoje conta com ele como professor e coreógrafo. É essa reverberação dos princípios de democracia da dança que ecoa em cada gesto de Grão. "É muito bom ver que, apesar de sermos tão diferentes dele no método, multiplicamos os princípios e ensinamentos de nosso mestre", diz Ignacio. A ideia de criar Grão surgiu da observação da dupla a um movimento natural da população que habita as redes sociais. "Começamos a perceber em nossas páginas do Facebook muita gente dizendo que queria dançar, que sentia saudade", comenta Ignacio. "Vimos que pessoas comuns estavam famintas por trabalhar a dança", continua Oliveira. "Decidimos responder a isso, criamos um projeto, fizemos uma audição, levamos para o estúdio Anacã, que se tornou apoiador cultural. E tudo começou." A seleção dos 33 bailarinos, entre 20 e 62 anos, que compõem Grão deu-se assim, de forma orgânica e democrática. "Queríamos observar o grau de intensidade e verdade de cada um. Quando abrimos as inscrições, veio todo tipo de gente", conta Oliveira. "Os critérios de escolha foram a história corporal, a diversidade e a percepção do processo."Já a inspiração para criar um espetáculo que celebrasse os ciclos da vida nasceu de forma natural, quando Ignacio observava um vidro de terra que Oliveira tinha trazido da África de presente para o amigo. "Pensei em algo que pertence ao homem desde sempre: o grão. É o que alimenta o mundo. É onde tudo começa. Nós somos semente", filosofa o diretor. A partir daí, a dupla criou uma relação do grão com os processos que acontecem com o ser humano. "Germinamos, nascemos, crescemos, sofremos as intempéries, semeamos, aramos nosso solo, colhemos, respeitamos o tempo, colhemos e celebramos." Por meio de um conceito comum, o que é do corpo de todos, surgem os ciclos da terra que se traduzem na coreografia. Para isso, os criadores montaram em janeiro um laboratório de pesquisa, experiência e vivência que festeja também o caminho percorrido por cada um dos bailarinos. Eles tiveram seus corpos transformados em terrenos férteis em que a dupla semeou os princípios da dança. E que nasce agora, com Grão.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.