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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Os bichos

Ser bicho é ser aqui e agora, respondendo a impulsos básicos

Atualização:

O termo não é um ataque. Não serve como insulto. Ouvi a expressão de alguém ao descrever um parente: “naquela casa, eles são bichos”. O que significa?

'Ser bicho é ser aqui e agora, respondendo a impulsos básicos' Foto: Robert Greene/Pixabay

Para o bem e para o mal, os animais respondem a impulsos básicos: fome, sede, sexo, sobrevivência. A vida de um leão não passa por crises existenciais, planos de longo prazo, crenças ou coisas similares. Por mais que exista a música “hakuna matata” (se você não sabe, não fique uma fera, apenas procure), os leões não pensam se a vida é isto que temos pela frente. Ser bicho é ser aqui e agora, respondendo a impulsos básicos.  Haveria pessoas-bicho? Meu amigo garantia que sim. Não são de uma classe social definida ou tipo físico. São seres humanos como todos os outros, apenas, destituídos de metafísica. Quando entram no cio, atacam o que estiver disponível. Na fome, desaparece o impulso gourmet ou a estética alimentar. Dormem quando querem. Urinam e defecam onde for possível. Irritados, atacam. Defendem a ninhada conhecida como filhos. Respondem ao chamado da vida em linha reta, para o bem e para o mal. Em um mundo de gente dissimulada, passam por “sincerões”. Dizem o que passa pela cabeça, na hora em que ocorre, sem filtro ou cuidados. Chutam o balde sem medir o peso dele em ação sobre o próprio pé ou onde o referido recipiente possa vir a cair. Como um gato, saltam no colo da visita e cochilam. Como um cachorro, latem para estranhos por serem estranhos. Como ursos, hibernam enquanto o frio mandar. Na chuva, não saem de casa. Não possuem horários ou princípios. Chegam aos compromissos quando bem entendem e deles saem no momento em que o cansaço aparece. Nada negociam. Conhecem a fome e o frio, nunca o vazio existencial ou o propósito de vida. Ouviram falar de pessoas que apresentam dificuldade em fazer o “número dois” fora de casa. Estranham o pudor. Vazam por qualquer orifício em qualquer lugar. Basta surgir a consciência de superpopulação na bexiga ou no intestino. Eructam e flatam com a mesma tranquilidade com que dizem oi. Vieram ao mundo sem culpa, só corpo, sem alma, só instinto. Seduzem pela liberdade e incomodam pela mesma característica. Os “bichos” são arrastados para cinemas ou teatros. Instalados, dormem bem. Seria justo falar em hibernação. Alguns roncam. Quando um destes animais se acasala com um ser humano e contrai núpcias, ouve reclamações fortes na saída. Ignora, pois é hora de comer e de ir ao banheiro, se houver um. Caso contrário, “vai em qualquer lugar mesmo”.  Não são irritantes pelas más intenções. Apenas desconhecem que nos separamos em algum ponto de nossos irmãos primatas na escala evolutiva. Outra metáfora infeliz. Chipanzés são elegantes e com olhar terno. Nossas criaturas antropomorfas estão mais para bovinos. Comer, mastigar, urinar e defecar sem a elegância melancólica dos primos-irmãos de toda a espécie humana.  Não gostam de ler. Veem programas, porém, não acompanham o que se passa lá. Observam como um gato parado em frente a uma tela de computador, saindo sem cerimônia do que se passa lá para ir ate a caixinha de areia da área de serviço.  Todas as famílias possuem alguns exemplares de animais no meio do mesmo sobrenome. Incomodam pouco, nada ajudam, causam alguma graça e críticas sobre modos ou tom direto. Conhece aquele tio que se levanta da ceia de Natal para ir ao banheiro e depois se atira no sofá ligando a televisão? É sua cota familiar, cármica, de ...bicho. Para não sobrecarregar demais um endereço, a natureza não coloca todos juntos, mas espalha pelas casas. Não existe, pois, uma família formada só de bichos. Claro a parentela da sua esposa ou de seu marido tem uma quantidade expressiva de animais, não obstante, mesmo lá, surgem seres humanos aqui e ali.  Em manada, eles uivam, crocitam, balem, grasnam, zurram, mugem, relincham, bufam e rugem. Não é necessário tentar decifrar, não existe mensagem. São sons variados, expressões de ar passando pela garganta, nunca frases completas ou ideias relevantes.  A favor? Nunca mandam mensagens de bom dia nos grupos de WhatsApp. Da mesma forma que não entopem celulares alheios, nunca visitam pessoas em hospitais ou levam abraço solidário a enterros. São lugares ruins e eles dizem que não gostam. Vivem de acordo com sua vontade imediata, como se não houvesse amanhã. Alguém já viu um javali olhando como quem diz: “e o próximo semestre, como será?”.  Não são de todo maus, sequer são bons. Apenas, são... bichos. Vivem o aqui e agora sem grande solidariedade, sem cinismos ou maquiavelismos familiares. Não atrapalham demais e nunca ajudam. Como um gato irritado em dia de limpeza pesada, saem do sofá para evitar o aspirador e saem do quarto quando o lençol é trocado. Podem até arranhar, porém, se você alimentar e não incomodar muito, vivem bastante se a ração for interessante. Nada cobram além do material. Nunca elogiam. Nunca apoiam, jamais percebem.  Algumas espécies vivem mais do que outras. Quase todas acasalam. Após uma existência plana, morrem como todos os humanos e todos os bichos. No velório, surgem amigos e familiares. Alguns, caridosos, contemplam o caixão e dizem: “Tão novo, tinha a força de um animal”. Não é só a força, há ternura nessa oração fúnebre. Minha querida leitora e estimado leitor: existe algum egresso do zoológico da minha crônica que coabita na sua família? É preciso ter esperança, na humanidade e na fauna. É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
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