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Os 50 anos de um musical pioneiro

'Os Guarda-Chuvas do Amor', cantado do começo ao fim, foi concluído em 1963

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Na primavera europeia de 1963, o diretor francês Jacques Demy (1931-1990) e o compositor Michel Legrand finalizavam a produção, em Paris, do primeiro filme totalmente cantado - diálogos, inclusive - da história do cinema. São, portanto, 50 anos do musical Os Guarda-Chuvas do Amor (Les Parapluies de Cherbourg), filme que lançou Catherine Deveuve, então com 20 anos, e acabou ganhando o prêmio máximo no Festival de Cannes de 1964 (o filme foi lançado em fevereiro daquele ano). O filme de Demy desbancou duas obras-primas brasileiras no festival francês: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. E eram 25 os concorrentes à Palma de Ouro.Meio século é tempo suficiente para tornar um filme clássico. É conveniente lembrar que gênios do cinema como o diretor alemão Fritz Lang, então presidente do júri em Cannes, tinham bons motivos para premiar Os Guarda-Chuvas do Amor, obra inovadora, requintada e que ousava dar prosseguimento a um projeto ambicioso de Demy: fazer com que todos os seus filmes estivessem ligados por personagens que migrariam de uma produção para outra. Porque as pessoas envelhecem e migram mais que personagens de cinema, Demy só conseguiria ainda usar dois deles depois de seu musical premiado: Roland Cassard e Lola, protagonistas de seu primeiro longa, ambos evocados em Duas Garotas Românticas (1966). Lola seria revivida em Model Shop (1968).A história é lembrada no livro Jacques Demy (leia texto abaixo, à direita), de Olivier Père e Marie Colmant, projeto concebido pelos dois filhos do cineasta (Rosalie Varda-Demy e Mathieu Demy) com a ajuda da mãe, a também diretora Agnès Varda. Trata-se de uma bela homenagem a um cineasta que tratou de temas complexos para um gênero - o musical - com o qual os franceses tinham pouca afinidade: o do relacionamento frustrado entre uma mãe solteira e um sobrevivente da guerra (em Os Guarda-Chuvas do Amor); o incesto entre pai e filha (em dois musicais, Pele de Asno e Trois Places pour le 26); a luta de classes e a greve de portuários (em Une Chambre en Ville), além da bissexualidade (em Lady Oscar e Parking).Quase todos foram musicados por Michel Legrand, intimamente ligado aos realizadores da Nouvelle Vague francesa (Godard incluído). Demy foi a ovelha negra do movimento, tripudiado como um tonto - ou um alienígena - por realizar musicais americanos em solo francês quando todos estavam empenhados em fazer filmes políticos austeros e anticapitalistas. Talvez isso explique a razão de Demy infiltrar comentários antibélicos sobre a guerra da Argélia em Os Guarda-Chuvas do Amor, fazendo o protagonista masculino Guy (Nino Castelnuovo) imprecar contra o governo e os patrões até se tornar ele mesmo proprietário de um posto de gasolina no epílogo do filme, ao reencontrar casualmente sua antiga paixão, Geneviève (Catherine Deneuve), já casada com outro e mãe de sua filha bastarda. Alienado? O filme é uma radiografia perfeita do mundo da pequena burguesia francesa nascida com o butim das guerras colonialistas. Com belos e inesquecíveis temas musicais, entre eles o mais popular composto por Legrand, conhecido internacionalmente como I Will Wait for You.Todos os musicais da dupla Demy-Legrand foram relançados num box, L'Intégrale (veja ficha ao lado) com 11 CDs, coleção concebida e realizada por Stéphane Lerouge com assistência do próprio compositor, dos filhos do cineasta e de Agnès Varda. Ela se integra ao projeto de tornar disponível a obra de um autor pouco visto pela nova geração: há quatro anos foi lançada uma coleção com 11 longas e 20 curtas do diretor em DVD (L'Intégrale Jacques Demy, Arte Vidéo, 80). Os Guarda-Chuvas do Amor permanece o clássico absoluto da dupla por sintetizar em três tempos o mundo do amor em dissolução, tema de todos os seus filmes, de uma forma ou de outra. No primeiro tempo, a partida, a paixão se manifesta entre uma garota ingênua de 17 anos que se apaixona por um mecânico convocado para servir na Argélia; no segundo, a ausência, ela, grávida, sucumbe à pressão materna e se casa com outro; no epílogo, a volta do soldado, que deveria coroar a relação amorosa, apenas marca o fim de todas as ilusões. Musical, sim, mas longe de Hollywood.

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