Orquestras estão devendo homenagem à altura do maestro

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Por Redação
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Análise: João Marcos CoelhoA Série Eleazar de Carvalho com a qual a Osesp quer "marcar o centenário de nascimento do inesquecível maestro Eleazar de Carvalho, que dirigiu a orquestra de 1973 a 1996", compõe-se de três concertos ao longo do ano. O primeiro, que marcou em março a estreia de Marin Alsop como nova regente titular, ligou-a a Leonard Bernstein, seu professor, que por sua vez foi parceiro de Eleazar em Tanglewood. O segundo, em maio passado, teve a presença de Roberto Tibiriçá, aluno de Eleazar, regendo a Sexta Sinfonia de Tchaikovski, "um dos cavalos de batalha" do maestro. E o terceiro acontece na semana de 28 de junho, com a apresentação da Missa Solemnis de Beethoven na Sala São Paulo e também inaugurando o 43º. Festival de Inverno de Campos do Jordão. Beethoven e Campos foram, de fato, duas suas maiores obsessões (no bom sentido).O máximo que se pode dizer a respeito deste "tributo" é que ele é protocolar. É difícil justificar uma homenagem tão modesta ao maestro que assumiu a Osesp em 1973, então desativada, e comandou-a em décadas conturbadas, com verbas mínimas que só propiciavam a subsistência e o salário (baixo) dos músicos. Eleazar teve de trabalhar com a prata da casa. Em 1976, na quarta temporada dupla - dirigindo a Osesp e implantando em Campos do Jordão o modelo "festa e aprendizado" de Tanglewood (ele dirigira por 17 anos, de 1951 a 1968, o Berkshire Music Center, sucedendo a Koussevitzky) -, repatriou o violinista Airton Pinto, o primeiro brasileiro a integrar a Sinfônica de Boston, entre 1959 e 1976, e professor do New England Conservatory. Airton foi seu spalla na Osesp até 1988. Mas não havia sede para a orquestra, que ocupou o Cultura Artística e depois o Cine Copan. Mesmo assim, Eleazar fez ciclos completos das sinfonias de Mahler, Beethoven, Brahms - e muita música contemporânea. Manteve a orquestra viva. Tudo meio aos trancos e barrancos, é verdade. Por causa dos salários baixos, os músicos ensaiavam pouco e eram ávidos cachezistas, ou seja, tocavam em qualquer lugar, até em casamentos, pra pôr comida decente em casa.Ou seja, a Osesp não era a orquestra dos sonhos de ninguém - nem dos músicos, do público e até mesmo do próprio Eleazar. Mas ele lutou até o fim da vida. Não tinha nenhum jogo de cintura nem paciência para negociações de bastidores. Ou lhe davam o que considerava fundamental, ou então "peitava" o oponente. Mesmo assim, a Osesp que John Neschling reformulou em 1997 já era mais de meio caminho andado para a "nova Osesp". Afinal, a velha Osesp vergou-se mas continuou de pé só por causa da obstinação de Eleazar. A visão de políticos que pela primeira vez enxergaram na orquestra uma excelente ferramenta e a vontade/determinação de Neschling para fazer uma proposta de fato profissional e estruturada para a Osesp mudaram tudo nos últimos quinze anos. Isso não é motivo, porém, para se reduzir a meros três concertos o tributo da orquestra a seu fundador de fato.Afinal, Eleazar não é importante apenas pelas décadas de formação e consolidação da Osesp. Possui luz própria inquestionável. Lidera a seletíssima lista de músicos brasileiros que de fato construíram fama mundial e se impuseram entre os grandes artistas da música no século 20. Uma lista diminuta que ainda deixa livre um dos cinco dedos de uma só mão. Se você pensou em Guiomar Novaes, Magda Tagliaferro e Nelson Freire como integrantes desta listinha, acertou. O vasto e diversificado projeto discográfico da Osesp bem poderia ter incluído algo permanente como tributo ao centenário do maestro: por exemplo, uma caixa com uma boa dezena de CDs contendo gravações de Eleazar. Ao menos meia dúzia de CDs históricos podem ser pinçados a partir das centenas de registros ao vivo em Campos do Jordão e nas temporadas da própria Osesp dos anos 80/90. Deve haver outras joias raras com a OSB e algo que se salve de suas demais orquestras brasileiras. Com destaque para Villa-Lobos, sua maior paixão, e a música contemporânea, com certeza. E algum registro da Sinfonia Fantástica de Berlioz e da Eroica de Beethoven - outras paixões do maestro.Dos registros internacionais, há pelo menos três obrigatórios. Os dois CDs da gravadora norte-americana Delos, de 1999, com a Orquestra Sinfônica da Paraíba, em concertos ao vivo de um festival lá realizado em 1992, que podem ser baixados por módicos US$7,99 cada no site www.classicsonline.com. São eles: A Brazilian Extravaganza, com obras de Villa-Lobos (Choros nº 8, Uirapuru e Fantasia para Violoncelo e Orquestra, Com o grande Janos Starker), e Marlos Nobre (Convergências). E Masters and Winners, também ao vivo no mesmo festival, com obras de Prokofiev (concerto para violino no. 2 com Scott Yoo), Bartok (concerto para viola com Karen Elaine-Bakunin, Vivaldi (Concerto para dois violoncelos, com Aldo Parisot e Emmanuel Lopez) e as Variações Rococó de Tchaikovsky, novamente com Starker. Nos arquivos de St. Louis também pode haver outras pepitas como esta, garimpada na Amazon: um CD Brahms, que traz Eleazar regendo a St. Louis e Itzhak Perlman no concerto para violino de Brahms, em registro ao vivo no Carnegie Hall nos anos 60. A obra que completa este CD, também gravada ao vivo no Carnegie Hall na mesma época, mostra o tipo de parceiros com os quais Eleazar cruzava nos EUA: Gennadi Rozhdestvensky rege a London Symphony no concerto duplo. Os solistas são Perlman e Mstislav Rostropovich (a Amazon indica que é do selo italiano Intaglio, mas está indisponível; basta pesquisar para encontrar o teipe). As gravações são precárias tecnicamente? Não as citadas, mas o critério de qualidade técnica nem sempre é decisivo em registros históricos. As execuções, sobretudo as brasileiras, são desiguais? Pode ser. Mas não dá pra jogar tudo isso no lixão. É urgente que, de uma vez por todas, se tome consciência de que, tão ou mais importante do que saber para onde as instituições musicais caminham ambiciosamente em direção a um futuro dourado, é conhecer o seu passado, a sua história. Só assim se cresce de modo sustentado.

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