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"Orfeu Negro" sai em DVD

Filme cultuado não precisa, necessariamente, ser bom. Às vezes, na maioria das vezes, nem é.Mas muitos amam o filme de Marcel Camus, irmão de Albert, o grande escritor

Por Agencia Estado
Atualização:

Há um culto a Orfeu Negro, o filme de Marcel Camus que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1959 e o Oscar para a melhor produção estrangeira do mesmo ano. O filme cultuado não precisa, necessariamente, ser bom. Às vezes, na maioria das vezes, nem é. Na contracapa do lançamento em DVD da Versátil, há uma frase de Ruy Castro em que ele diz que no dia em que não houver mais cinema e todos os filmes tiverem se evaporado, mesmo assim sobrará uma cópia escondida de Orfeu Negro para recomeçar o culto. Muitos amam o filme de Marcel Camus, irmão de Albert, o grande escritor. O júri de Cannes, presidido por Marcel Achard e integrado pelos diretores Michael Cacoyannis e Julien Duvivier, pelo ator, bailarino e diretor Gene Kelly, pela atriz Micheline Presle e pelo produtor Carlo Ponti, não hesitou em lhe atribuir a cobiçada Palma e isso num ano em que concorriam Luis Buñuel ("Nazarín") e dois expoentes do movimento celebravam o lançamento oficial da nouvelle vague (o François Truffaut de Os Incompreendidos e o Alain Resnais de Hiroshima, Meu Amor). Talvez venha daí um pouco do ódio que tantos também devotam a Orfeu Negro. Cahiers du Cinéma, que foi o celeiro da nouvelle vague, nunca perdoou a Camus o fato de haver usurpado o prêmio que, para a revista, deveria ser de Truffaut ou Resnais. No Brasil, o ódio não foi menor. Os jovens que iriam fazer o Cinema Novo também acusaram Camus de trair o Brasil com seu exotismo. Um deles foi Cacá Diegues. Apaixonado pela peça de Vinícius de Morais, Cacá sempre quis refazer Orfeu. Refez e a surpresa é constatar que seu filme, por mais qualidades que ostente, no fundo não é muito menos exótico que o de Camus. O caso de amor desse francês pelo Brasil começou em 1957 quando ele descobriu Salvador, pela mão de Jorge Amado. Mas a idéia do filme partiu do produtor Sacha Gordine, encantado pelo texto de Vinícius (Orfeu do Carnaval). Fascinado pela MPB, o poeta transpôs o mito grego para o morro carioca, evocando, por meio de um clima mágico, a gênese do samba. A trilha de Antônio Carlos Jobim e Carlos Lira, com Manhã de Carnaval e A Felicidade, contribuiu muito para a consagração do Orfeu de Camus. É um filme estrangeiro feito no Brasil. Camus carrega no exotismo, adota soluções discutíveis, para não dizer erradas, de mise-en-scène. Por incapacidade poética, desumaniza o que deveria ser o instante mais denso do filme, como escreveu, há muitos anos, um dos pais da crítica cinematográfica brasileira, o baiano Walter da Silveira. A suprema angústia humana transparece no reencontro de Orfeu e Eurídice, quando esta, morta, pode voltar à vida, desde que o amante nunca se volte para vê-la. Camus situa a cena num candomblé e faz com que a voz de Eurídice venha de uma velha. O próprio diretor, que ficou quase um ano no Rio, confessou que só teve consciência da realidade social da cidade quando era muito tarde. Jean-Luc Godard conta que a filmagem estava no fim e Camus, sem dinheiro, foi obrigado a interrompê-la. Só aí, esperando pelo cheque do produtor, ele começou a andar pelo Rio e descobriu o que era a vida carioca. Mas há grandes momentos, claro. Nenhum filme vira cult sem oferecer emoções que o seu público considera magníficas. O primeiro encontro de Orfeu e Eurídice, a noite de amor de Serafina, a permanência do mito nos três meninos do morro calam fundo. E há o primeiro ensaio da escola de samba, mesmo que a americana Marpessa Dawn, a Eurídice de Camus - seu Orfeu é o ex-jogador Breno Melo -, não tenha o gingado da verdadeira cabrocha. Léa Garcia e Lourdes de Oliveira são melhores que ela, que executa uma coreografia de balé mais que um passo popular (por isso, talvez, Gene Kelly gostou do filme). Por equivocado que tenha sido esse filme, teve um impacto decisivo em 1959. Walter da Silveira escreveu que a maior vitória de Orfeu Negro foi testemunhar as possibilidades fonéticas do povo brasileiro. Os diálogos, que o próprio Vinícius traduziu da adaptação francesa de Jacques Viot, trazem as primeiras falas definitivas do Brasil no cinema. Só isso faz desse filme francês um marco para o cinema brasileiro. O disco digital traz como extras biografia do diretor, trailer original, recortes da imprensa da época e comentário sobre a trilha sonora. Orfeu Negro. França, 1959. Direção de Marcel Camus, com Breno Melo e Marpessa Dawn. DVD da Versátil, nas locadoras

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