Orfeu entre tragédia e show

Montagem de desenho indefinido e anêmico é apenas um desfile de composições literárias e musicais

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Por Análise: Mariangela Alves de Lima
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Emprestada dos franceses, a expressão "sucesso de estima" caiu em desuso sob a hegemonia norte-americana. Sendo mais pragmáticos, os critérios que substituíram essa valoração ambígua não separam o apreço de poucos do desinteresse de muitos. Bem-sucedida é, hoje, a obra de arte que vende bem e conquista um grande espaço nos meios de divulgação. No entanto, é esse galicismo fora de moda que faz justiça a Orfeu da Conceição, uma composição teatral de Vinicius de Moraes prestigiada por uma fortuna crítica abundante e encomiástica, mas encenada poucas vezes, em geral com intuito comemorativo.As qualidades que sustentaram a repercussão crítica desde a estreia, em 1956, até o presente, são as indestrutíveis virtudes do poeta rigoroso na construção e límpido na captura de estados anímicos e dilemas existenciais. Há na peça versos fulminantes, inesquecíveis para o leitor ou ouvinte atento e a eufonia da alta poesia é, por si só, um convite à teatralidade. Por outro lado, a fabulação esgarçada, a insubstancialidade das personagens e os recortes arbitrários por onde se insinuam as intervenções musicais contrariam a unidade trágica a que a peça aspira. O protagonista Orfeu, músico do morro e não de "um morro", é a voz lírica celebrando o amor e isso resume sua ação na peça. Enquanto o músico canta a paixão, a coletividade mitifica um pacificador sem que se saiba bem qual a relação entre o amoroso e o herói. Alguns episódios só se tornariam compreensíveis para o público de teatro se fossem acompanhados de notas esclarecedoras sobre a fonte mitológica e é este o caso, por exemplo, do ataque das mulheres ao herói ensandecido. Em suma, a peça não é modelar, mas é amada por muita gente.As limitações e, sobretudo, a irresolução do texto, que hesita entre a concentração trágica e a segmentação do teatro musical, são certamente problemas que a encenação contemporânea, desobrigada da fidelidade ao texto, resolveria com facilidade relativa. É um desses enigmas da vida teatral, portanto, a anemia do espetáculo dirigido por Aderbal Freire-Filho. Erudito e popular. Quando alguém abre a boca em cena é para pronunciar versos de um grande poeta, a música é de Tom Jobim e a direção musical é de Jaques Morelenbaum e Jaime Alem, dois ases experientes na trama entre a música erudita e a popular. Até o elenco compensa a falta de experiência dramática com candura juvenil e competência para as partes musicadas e coreografadas. São fatores que, somados, prenunciam um espetáculo no mínimo merecedor do sucesso de estima.Nem a esplêndida execução de um cancioneiro que o público evidentemente ama e conhece de cor e salteado é suficiente, contudo, para unificar a encenação. Levando a sério, talvez em demasia, a analogia entre o mito grego e a cultura negra, o espetáculo tem um desenho espacial e temporal indefinido, tonalidades pastel e uma movimentação cujo maior cuidado parece ser o de preservar a elegância do conjunto. Não há descabelamento ou apelos ao característico, tentações frequentes na representação dos pobres, mas tampouco se expressa o desespero amoroso ou a inquietude do coro. Contra o fundo anódino da cenografia de Marcos Flaksman evolui um parente esquisito do show. Não empolga porque a matéria literária, por natureza, exige do espectador atenção e uma certa frieza e, ao mesmo tempo, dissolve o estado contemplativo, intercalando músicas e textos extraídos de outros contextos autorais. Enfim, o resultado é o de uma seleta para principiantes que faz desfilar, em perspectiva panorâmica, composições literárias e musicais de qualidade garantida.Morros cariocas. Nosso modernismo, inspirando-se nos russos, sonhou um teatro-estádio, grandioso na estatura e na ambição de conquistar a "massa" com o mesmo poder galvanizador do esporte. De modo implícito na peça Orfeu da Conceição e explícito em comentários, Vinicius de Moraes pretendeu a mesma grandeza quando assimilou a paisagem cultural dos morros cariocas ao assunto trágico e, sobretudo, aos elementos espetaculares da tragédia. Músicos, bailarinos, coro e máscaras ampliam escala e, portanto, a visibilidade do teatro. Nesta adaptação sucintamente denominada Orfeu, a dimensão é a da casa de show, um lugar onde em geral cabe muita gente, mas onde se acomodam com dificuldade grandes ambições artísticas.

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