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Opiniões de choque

Prosa de Sábado

Por Sergio Augusto
Atualização:

Gandhi causou mais danos à humanidade do que Hitler. A revolução islâmica salvou o Irã para a democracia. Os governos militares fizeram um bem inestimável ao Brasil. Lula transformou o Brasil no Sudão da América do Sul. Não subscrevo nenhuma dessas afirmativas, e só as juntei aqui para mostrar como certos disparates e determinados vaticínios não brotam exclusivamente de mentes ignaras e rombudas - se é que essa constatação, de tão velha, já não virou um truísmo. A primeira afirmativa foi processada no cérebro do filósofo esloveno Slavoj Zizek. A segunda trazia a assinatura de Michel Foucault. A terceira era uma ideia fixa de Gilberto Freyre. E a quarta, com o verbo no futuro (do presente ou do pretérito, tanto faz), foi uma profecia do Paulo Francis. Uau!Segundo Zizek, Gandhi e seu militante pacifismo desencadearam uma onda de violência improdutiva, que não eliminou a influência britânica sobre os rajás da Índia nem o sistema de castas do país, ao passo que Hitler fez de tudo para aniquilar o colonialismo inglês. Perdeu a parada, mas até onde pôde ir, sua violência afetou mais o status quo do mundo do que o pacifismo de Gandhi o status quo da Índia. O desconcertante Zizek, que é a favor da violência, desde que ela consiga mudar o que precisa ser mudado, aumentou seu contingente de desafetos ao aproximar o símbolo máximo do pacifismo, da não violência, do símbolo máximo do belicismo e da ferocidade - sobretudo na terra de Gandhi, por conta de uma entrevista ao The Times of India, em janeiro deste ano. Seu controverso paralelismo reavivou a fúria do jornalista Adam Kirsch, há tempos às turras com ele na revista The New Republic. Kirsch baixara a lenha em dois livros do filósofo, Violence e In Defense of Lost Causes; Zizek respondeu; o placar atual é 2 x 1 a favor de Kirsch. Quem mandou Zizek dizer (ou insinuar) que Hitler "não foi violento o bastante"? Kirsch, judeu, não quis saber de examinar a provocação pelo ângulo menos óbvio. Por pouco não a comparou à crítica de Sartre à "decepcionante" atuação dos jacobinos na Revolução Francesa. Para Sartre, muito mais cabeças deveriam ter rolado entre 1792 e 1795, para o bem de todos e felicidade geral da nação.Se Sartre pediu mais sangue no Reino do Terror, Marx qualificou Simon Bolívar de "canalha covarde", Engels festejou a conquista da Califórnia ao México pelos Estados Unidos, Eliot era antissemita, Pound bajulou Mussolini e Heidegger curvou-se ao nazismo, sem que nenhum desses desvios empanasse a importância de suas contribuições para um mundo mais civilizado, que sentido faz patrulhar e punir Foucault por sua pixotada pró-aiatolá Khomeini? Quando o xá da Pérsia começou a balançar no trono, no final dos anos 1970, Foucault vislumbrou no Irã o surgimento de uma república democrática, inspirada por "uma religião de combate e sacrifício", que transcenderia o islamismo e transfiguraria o mundo. Os mulás, garantiu, não eram fanáticos, mas a voz dos oprimidos. O xá caiu, os mulás empalmaram o poder e o fundamentalismo religioso sufocou os anseios democráticos, combatendo e sacrificando os "impuros", submetidos a julgamentos sumários e execuções quase instantâneas. Alarmado com o revertério, Foucault enviou carta ao primeiro-ministro Mehdi Bazargan, seu velho amigo, mas este, que também acreditara na possibilidade de uma república laica no Irã, logo deixaria a pasta, decepcionado com os desvios da revolução. Na mesma época em que Foucault augurava um futuro fulgurante para o Irã, nosso mais festejado sociólogo, Gilberto Freyre, utilizava seu espaço na imprensa para incensar a ditadura militar. "O que teria sido do Brasil, nestes últimos anos, sem governos excepcionais?", perguntou num de seus artigos para a Folha de S. Paulo, em junho de 1978. Já o sabíamos vaidosíssimo, ególatra, fascinado pelo poder e amigo de ditadores (Getúlio Vargas, Salazar), mas sua atuação como chaleira do regime excepcional surpreendeu até alguns de seus mais devotos discípulos.Freyre defendeu o AI-5, manifestou-se a favor de eleições indiretas ("mais honestas que as diretas"), sempre esquivou-se de condenar a censura a livros, filmes e peças de teatro (não abriu o bico quando o ministro da Justiça Armando Falcão proibiu o livro de contos Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca), fez um programa de governo para a Arena, o partido oficial do regime militar, a pedido de seu presidente, Filinto Müller, antigo verdugo do Estado Novo, e apoiou a candidatura de Paulo Maluf à presidência. Morto há 23 anos, perdeu a ascensão de Lula à presidência. Nada desautoriza a desconfiança de que teria se transformado num admirador irrestrito do atual presidente, fosse ele quem fosse. Paulo Francis, se bem o conheci, continuaria um anti-Lula intransigente, explorando-lhe e mesmo exagerando-lhe os defeitos, mas com um pouco da cautela dos gatos escaldados. Nenhum de seus presságios vingou. Nem o "povão reacionário" conseguiu eleger Lula em 1989, nem os militares saíram do quartel quando ele derrotou José Serra. Francis previu que o Brasil, com Lula no Planalto, viveria "paralisado" por greves, "isolado do mundo" e correndo "o sério risco de se tornar o Sudão da América do Sul", com uma inflação descontrolada e uma presença nula no comércio internacional. Bendita seja a opaca bola de cristal do Francis.

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