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Opiniões corajosas e ainda atuais de Pedroso D´Horta

Por Agencia Estado
Atualização:

É fascinante acompanhar a trajetória do olhar crítico de Arnaldo Pedroso D´ Horta. Mais do que a maioria das análises que foram decantadas nos livros de história da arte da época em que atuou (1943 a 1973), é o testemunho e especialmente o envolvimento dele com a cena de seu tempo que faz toda a diferença. Não somos servidos de teorias cuidadosamente tecidas e investigadas. Não houve distanciamento para perspectiva segura e lógica. É um engajamento vibrante. Arnaldo agia no calor da hora, engalfinhava-se corajosamente com limitações e contingências pessoais para extrair conclusões que ele mesmo avisava: eram subjetivas, sem qualquer intenção de verdade revelada. Aliás, reside nesse traço de caráter franco e avesso a poses uma das maiores qualidades dos textos de Pedroso D´ Horta. Fiel à ideologia professada por sua geração, o crítico paulistano tinha horror a totalitarismos de toda espécie. Por quê iria aceitá-los na sua seara? Provocava: "Condotieris das artes, não os deve haver mais que de homens". Autoridade incontestável do crítico? Pois sim. Em uma de suas primeiras críticas, publicada em setembro de 1943, ele pisa nos calos de muita gente. Colegas de ofício, adeptos de sentenças dogmáticas e estilo rebuscado, vestiram a carapuça até os pés. "O espírito crítico é altamente apreciável, mas o estabelecimento da autoridade do crítico é um mal, pois pressupõe a eliminação do espírito crítico da parte de quem aceita como verdade e como regra o que sai da boca do Crítico". Esta é outra frase explosiva do mesmo texto de 1943. Esse e outros 169 vibrantes artigos sobre arte, selecionados de um total de 383 que Arnaldo Pedroso D´ Horta publicou ao longo de três décadas em diversos veículos da imprensa brasileira (principalmente no Estadão e Jornal da Tarde), foram reunidos no livro O Olho da Consciência. A organizadora da publicação é Vera D´ Horta, filha do crítico e respeitada historiadora de arte. Vera, autora de obras de fôlego como Lasar Segall e o Modernismo Paulista (Brasiliense, 1984), enfrentou talvez sua missão mais difícil ao assumir a inescapável tarefa de organizar o legado crítico do pai. Ela mesma admite, no texto de apresentação: "Que ia ser difícil, eu sabia, mas não imaginava que ia ser quase impossível". Com pleno domínio das técnicas de pesquisa e armada da meticulosidade científica que lhe é peculiar, Vera talvez tenha subestimado um único dado: suas próprias emoções. Sentiu-se invasora ao remexer arquivos e esvaziar gavetas. "Invadi como uma inimiga a intimidade que meu pai, em vida, tanto cultivara e defendera". Vera herdou do pai não só o gosto pelas artes visuais e sua análise acurada. Também cultiva o amor à liberdade de pensamento e à espontaneidade. Ela confessa de plano, no texto de apresentação do livro: "desde o início, meu envolvimento emocional foi de tal ordem que não teria sentido, agora, promover falsa assepsia desses laços afetivos". Pai e filha, portanto, não são dados a poses nem afetações. O pai irá expor seu modo de entender a arte em comentários objetivos, de argumentação articulada. Textos aliciadoramente bem escritos. O conteúdo oscila desde uma lucidez premonitória até o claramente reativo diante de certa arte que sua geração não irá entender por inteiro. A filha não se permite escamotear sequer esses momentos assincrônicos, antes os destaca como documento de época. A geração de Arnaldo, situa Vera, é a dos "jovens que começaram a atuar intelectualmente nas décadas de 30 e 40, vivendo internamente um tempo de acirradas disputas ideológicas, que repercutem, em grande parte, o agitado clima político europeu". Essa geração viveu a criação da Faculdade de Filosofia da USP (1934), a fundação dos principais museus de arte da cidade (MASP em 1947 e MAM em 1948) e a primeira Bienal de São Paulo (1951). Em tal ambiente, não é difícil imaginar a necessidade de desenvolver o jornalismo cultural. Tarefa à qual D´ Horta também se alia. Como o crítico literário Antonio Cândido muito bem situa, Pedroso D´ Horta "desconfiava de tudo que era fácil, e quem sabe, paradoxalmente, foi por isso que pôde ser incomparável no jornalismo, onde a facilidade é a norma e o pão de toda hora". Arnaldo, testemunha Cândido, era do tipo que "se matava para fazer bem, para fazer melhor, orgulhoso e persistente". Aos 30 anos de idade e pouco após iniciar-se na crítica, Pedroso D´ Horta decide lançar-se também na carreira artística. Começa a ganhar prestígio crescente como desenhista, sendo o primeiro brasileiro premiado na Bienal de Veneza (1954), na categoria desenhista e gravador estrangeiro. No ano seguinte, expõe na galeria de maior prestígio na época no País, a Petite Gallerie (Rio). O texto do catálogo é de Mário Pedrosa. Em 1961, tem sala especial na Bienal de São Paulo. Não se pense, porém, que era de se deixar levar por vaidade ou privilégios. Em carta ao amigo poeta Carlos Drummond de Andrade, reclama a ausência de um texto mais analítico sobre sua obra, que pudesse ajudá-lo a ver falhas. "Esse tipo de admiração, sem dúvida lisonjeiro, escorrega pela pele e cai no chão, pois todo trabalho de criação artística é um trabalho de insatisfação". O desenhista e o crítico iriam conviver em estreita harmonia. Suas análises estéticas mais aprofundadas situam-se não raro no terreno do traço, seja ele desenhado ou gravado. O projeto editorial do livro harmoniza esses dois lados reproduzindo deliciosos desenhos ao longo das páginas de texto. Muitos deles são resultado do amor pelos bichos, o que o levaria a fazer desenhos técnicos para o Museu de Zoologia da USP, dirigido por seu amigo Paulo Vanzolini. O crítico viveu o entrechoque de dois mundos. Seu olhar formou-se nas técnicas tradicionais do modernismo tardio vivido nos anos 40, mas foi confrontado com a emergência vertiginosa das linguagens contemporâneas, especialmente a partir da arte abstrata, da pop art e da arte conceitual. Foi um desafio e tanto. Seu coração estava e permaneceu com os pintores do Grupo Santa Helena, como Volpi, Bonadei e Rebolo. Estava com mestres de técnicas tradicionais, como os xilógrafos Livio Abramo e Maria Bonomi. Mas seu olhar conseguiu reconhecer e aceitar a ruptura trazida com a arte abstrata e especialmente com o movimento concreto e neoconcreto. Pedroso D´ Horta, como bem documentam seus textos reproduzidos no livro O Olho da Consciência, fez avaliações certeiras sobre os concretistas Lothar Charoux, Ubi Bava, Fiaminghi, Abelardo Zaluar e Aluísio Carvão. O desafio seguinte, trazido com os ecos da pop art no Brasil, já envolveria certo problema de sintonia. A "Rex-filosofia" e os "Rex-rapazes" (ou seja, o grupo autodenominado Rex Time e formado por Nelson Leirner, Geraldo de Barros, Wesley Duke Lee e outros), foi recebido com ironia demolidora pelo crítico, em 1966. Ele concede que Leirner "teve uma idéia engraçada" (quadros de floresta incendiada tendo embaixo autênticos extintores de incêndio), mas fulmina: Geraldo de Barros "desperdiça gratuitamente uma nítida vocação publicitária". O artista expunha telas pop baseadas na visualidade dos cartazes de propaganda. Nelson Leirner seria novamente seu alvo no ano seguinte, durante a individual em que exibe pela primeira vez a série Homenagem a Mondrian. Então agora era arte um sujeito expor como pintura uns tecidos recortados por zíperes? Pedrouço D´ Horta ficou indignado. "Os padrões das fazendas utilizadas não têm nenhum requinte, são de cores prontas e que podem ser encontradas em qualquer loja do ramo", escreve. Claro que hoje, no conforto da poltrona e com os livros de história da arte na prateleira ao lado, podemos observar que Pedroso D´Horta errou. Afinal, Nelson Leirner fazia apropriação de viés duchampiano. Sua obra estava contaminada de questões conceituais que rompiam com o culto do apuro técnico. Seria injusto esperar, no entanto, que isso fosse entendido pelo disciplinado e obsessivo desenhista que habitava o crítico D´Horta (e que o forçava a jornadas de até sete horas diárias durante uma semana para produzir um único desenho). Todo crítico de jornal diário está exposto a esses perigos de equívocos de julgamento. Faz parte dos chamados ossos do ofício. É nesses momentos, aliás, que ele exerce com mais força talvez (embora involuntariamente) o papel de catalisador de um espírito de época. Flagramos no seu espanto o choque do novo. Vera D´Horta, fazendo falar mais alto a historiadora do que a filha, exibiu todos esses momentos sem censura alguma. "O crítico não é alguém que tudo sabe, mas um observador privilegiado que tem uma função pedagógica", escreve Pedrouço D´ Horta. Muitos de seus textos são de uma atualidade espantosa. Especialmente os dedicados à política cultural e às mazelas da Bienal de São Paulo. Vejamos alguns. "As falhas da Bienal precisam e devem ser apontadas, reiteradamente; somos céticos, entretanto, quanto à possibilidade de saná-las". Ele argumenta: "O defeito fundamental desse empreendimento é o seu gigantismo. Tornou-se ele um imenso circo de arte, dentro do qual o que importa é a quantidade, a variedade e o insólito dos números apresentados". Bingo. Podia estar falando da Mostra do Redescobrimento. O texto é de 1966 mas podia se de hoje. Ele identifica o principal problema da Bienal no fato de que "entre os que a conduzem não há nenhum especialista de arte". E prova: "sua estrutura burocrática interrompeu os contatos com os artistas e deixou de contar com os conselhos dos críticos de arte (...) Ninguém mais ocupou o lugar por que passaram Léon Degand, Wolfgang Pfeiffer, Sérgio Milliet, Lourival Gomes Machado, Paulo Mendes de Almeida e Mário Pedrosa". Em outro artigo, o crítico volta à carga: "Todos esses homens, entretanto, exatamente na medida de sua seriedade, competência e intransigência, tornaram-se um estorvo a que a Bienal viesse a dar naquilo que -- uma vez eliminados eles, um a um, e sem que lhes fosse atribuído substituto -- ela agora chegou: uma feira de arte como se fosse uma feira do vestuário (...) sem outra ambição que a de amontoar quantidade de objetos". Não temos críticos desse quilate referido por D´ Horta na atualidade? Certamente que temos. Um deles, aliás, foi contratado e trabalha atualmente para o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Outros, diversos, estão lecionando na USP ou dirigindo museus brasileiros, escrevendo livros ou organizando mostras. Outro há, até, que aceitou fazer a curadoria da próxima Bienal mas ainda luta para ter seu território de ação entendido e respeitado. Então por quê a Fundação Bienal prefere ter a esmagadora maioria de seus conselheiros formada por pessoas ausentes da instituição durante todo o ano, pessoas sem conhecimento científico do assunto sobre o qual legislam e votam? Pessoas que repetem, no asfalto e no meio empresarial, o subdesenvolvido voto de cabresto que eterniza os coronéis das zonas rurais? É ainda um texto de Pedroso D´ Horta que nos lança luz sobre essa eterna crise da Fundação Bienal. "Todos esses homens, entretanto, exatamente na medida de sua seriedade, competência e intransigência, tornaram-se um estorvo a que a Bienal viesse a dar naquilo que - uma vez eliminados eles, um a um, e sem que lhes fosse atribuído substituto -- ela agora chegou: uma feira de arte como se fosse uma feira do vestuário(...) sem outra ambição que a de amontoar quantidade de objetos" . Em boa hora Vera D´ Horta nos trouxe de volta a palavra veemente e corajosa de um grande crítico brasileiro. Agora, aguardamos a publicação da rica e extensa correspondência que ele manteve com figuras importantes de sua época.

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