Óperas na caatinga

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Por Lauro Lisboa Garcia
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A Bahia, que deu "régua e compasso" e a bossa nova de João Gilberto também gerou outro gênio recluso: Elomar Figueira Mello. De lá do sertão profundo, das margens do Rio Gavião, ele vem mais uma vez à cidade grande, pela qual sente aversão (não exatamente São Paulo, mas qualquer metrópole), para outro concerto ao lado do filho, o violonista João Omar, domingo no Auditório Ibirapuera.São Paulo é a cidade onde a música rara de Elomar melhor se projetou, e talvez a única "cantada" por ele, servindo de cenário de passagens de suas óperas, como O Retirante, O Peão Mansador e A Carta. Uma de suas obras-primas, Chula no Terreiro, tem um personagem retirante que morre atropelado na capital paulista, quando distraidamente atravessa a rua olhando para a Lua.A épica Chula não está prevista no roteiro do concerto de domingo, que tem peças inéditas e outros clássicos, como Campo Branco, Cantiga de Amigo, A Função e Na Estrada das Areias de Ouro, esta com participação da cantora Alba Graça Marabelli. O concerto é também uma homenagem a Marcus Pereira - publicitário e pesquisador musical paulista que criou uma importante gravadora independente na década de 1970 e distribuiu o clássico LP duplo Na Quadrada das Águas Perdidas, de Elomar, em 1979 - e se estende a Luiz Gonzaga (1912-1989).Algumas das inéditas estarão no álbum Riachão do Gado Brabo, que inclui árias de óperas de sua autoria e marca a volta de Elomar ao disco, depois de muitos anos. Seu registro mais recente é Cantoria 3, de 1995. Em 2006 ele regravou apenas três canções, incluídas entre poemas e depoimentos para um CD que acompanha o livro Tramas do Sagrado - A Poética do Sertão de Elomar, de Simone Guerreiro (Editora VentoLeste). O novo álbum já teve metade das músicas gravadas em estúdio montado na Fundação Casa dos Carneiros, criada para cultivar a obra do autor numa fazenda em Vitória da Conquista (BA), e deve ser concluído ainda este semestre.Elomar não dá entrevistas, não permite que se fotografe ou grave suas apresentações. Essa é uma das cláusulas de seu contrato. "Já perdemos muitas propostas de concertos e outros produtos - como também cinema com propostas de longa com imagens de Elomar -, programas de TV, seriados, por conta disso", diz sua produtora e assessora Rossane Nascimento.Ainda segundo Rossane, o menestrel do sertão baiano, que já teve música incluída em trilha de novela (Retirada em Gabriela, 1975), deixa de fazer projetos "de alta cifra" como esses, porque para ele "importa manter o que ele defende: não se 'vender'". "Sobre o porquê de não permitir fazer registro, é uma das suas teses sobre a anti-imagem." Ele deu entrevistas até 1998 e declara que já falou o que tinha a falar. Parou em parte por causa da questão da imagem, da televisão, que veio para causar danos "sobretudo à língua portuguesa". Considera a imprensa televisiva "tremendamente irresponsável", mais interessada na imagem do que na notícia.Formado em arquitetura, ele criticou as estruturas do teatro do Sesc Belenzinho, onde se apresentou em 2011, queixou-se da acústica e de um persistente ruído do sistema de iluminação. Num concerto tão intimista, de voz e violão, qualquer zumbido pode ganhar proporções de poluição sonora. As semelhanças com João Gilberto param aí. Em depoimento gravado no CD que acompanha o livro Tramas do Sagrado, Elomar fala sobre as diferenças entre a Bahia do litoral, e sua "política bairrista que Salvador não só professa como exerce em relação ao resto do Estado", e a do sertão discriminado."Saí de um curral da casa de meu pai em São João Joaquim e de uma hora pra outra caí dentro de um internato americano, Palácio Conde dos Arcos. Era outra cultura, outra linguagem, outra organização social. Até ali Salvador não tinha aquele status de capital, com uma certa respeitabilidade pelos sertões, pelo interior. Isso pela necessidade dos políticos de então, por questão de voto e tal", comentou. Com a criação da Bahiatursa, segundo o ponto de vista de Elomar, "criou-se um movimento segregacional" na supervalorizada capital e no Recôncavo. "A partir da bossa nova então foi que essa coisa começou a explodir."Ele que é da cultura "de pés descalços, da precata (alpercata) salgabunda, do chapéu de couro, do vaqueiro, campônica mesmo", concluiu já aos 16 anos que existem dois Estados baianos, sendo que no da beira-mar "existe uma discriminação velada, politicamente, nos meios de comunicação". "Anuncia-se que a Bahia é uma só, mas é mentira. O sertão sempre foi abandonado."Em texto antológico para a contracapa de seu primeiro LP, ...Das Barrancas do Rio Gavião (1973), o poeta bossa-novista Vinicius de Moraes (1913-1980) o chamou de "príncipe da caatinga" e até considerou irônico que ele tivesse "mar" no nome. Elomar vive no campo, onde lida com atividades rurais, compõe e escreve romances e roteiros para cinema. Como seu pai já dizia no início da década passada, lá também chegou "o lixo cultural, estético e espiritual", via televisão. Porém, ele ainda encontra harmonia entre os sertanejos, silêncios e cantos de pássaros.Agora escreve o ensaio A Era dos Grandes Equívocos, análise crítica e filosófica sobre o século 20. Em 2008 lançou seu primeiro romance de cavalaria, Sertanílias, o primeiro de uma série de quatro épicos. Os outros três - Sertano Passa pela Cidade, O Régulo da Montanha Azul e Mar de Pedras - já estão prontos. Seu cancioneiro foi transcrito para violão por uma equipe de músicos e técnicos mineiros, bem como um ensaio biográfico de João Paulo Cunha, que acompanha as partituras publicadas. Elomar: Cancioneiro, bem como outras publicações e discos estão à venda nos concertos. Oportunidade rara para se aproximar desse "cúmplice" de Guimarães Rosa.Elomar criou dois teatros em Vitória da Conquista com programação voltada para música de concerto e óperas brasileiras. Um deles, o Teatro Escola Lírica Mineira, tem capacidade para 130 pessoas. "O espaço é a antiga sala, da casa-grande da Fazenda Casa dos Carneiros, hoje sede dos eventos da Fundação Casa dos Carneiros, que Elomar mesmo fez questão de projetar com acústica de qualidade imensurável para esse fim", conta Rossane Nascimento, produtora e assessora do artista.O outro, Domus Operae (Casa da Ópera em latim), foi inaugurado parcialmente e se situa na ágora da fazenda Casa dos Carneiros, "em plena caatinga, ao lado do curral de bodes e carneiros". Trata-se de um teatro clássico para grandes concertos e montagens de óperas, com capacidade para 2 mil pessoas. Além de concertos, desde novembro de 2010, cenas de três óperas de Elomar foram apresentadas na pré-estreia do Projeto Festival da Ópera Brasileira.O projeto foi aprovado pela Lei de Incentivo Federal. Os planos para a primeira edição são de montar as óperas Pedro Malazarte, de Guarnieri, e Auto da Catingueira, de Elomar, além do concerto Fantasia Leiga para Um Rio Seco, também dele , com orquestra e balé. O Auto estreia em abril com duas apresentações no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Ainda está previsto o concerto Rapsódia Brasilis, com artistas convidados como Saulo Laranjeira e Renato Borghetti. / L.L.G.

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