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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Olhar para onde?

Em ‘Não Olhe para Cima’, o olhar, em qualquer direção, funciona a partir da sedução da fama

Atualização:

O filme fez sucesso nas telas e nos debates das redes sociais. Não Olhe para Cima (Don’t Look Up – 2021, Adam McKay) é uma comédia sobre o impacto de um corpo celestial na Terra. Percebido com meses de antecedência por astrônomos fora do mainstream, envolve o esforço de divulgar a notícia do cataclismo. O meteoro é só um pano de fundo, fundamental, todavia se torna o palco da exibição de uma imensa fauna de conflitos. 

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É uma comédia com reflexão bem séria, escrachada até nas cenas extras depois dos créditos, pesando a mão na caricatura. Acho que o riso desarma muitos espíritos e pode ajudar a entender mais do que um sisudo documentário político. 

É difícil definir o exato tema da obra. É sobre o caráter estrutural podre da política? Sim, mas a questão maior não é uma presidente incapaz de focar no mais importante. Ela sempre é submissa a imperativos econômicos e de poder do seu grupo. Acho que se trata, antes, da própria maneira de comunicação da política. Se precisarmos de uma palavra mais sofisticada, analisa a epistemologia de percepção dos valores políticos espetacularizados. Como gerir um grupo enorme sem estar submetido a normas midiáticas emocionais e fúteis? Assim, a película julga uma presidente dos EUA e seu filho idiota, porém, ao mesmo tempo, julga toda a maneira de perceber o poder pelo público. Eleita e eleitores estão na berlinda, desde episódios banais sobre ela fumar até em comícios de celebração da estultice coletiva. 

Seria um filme sobre ciência e negacionismo? Sim, também, ainda que vejamos na ficção a ciência dialogando com o desejo de fama e com a sedução das redes. Os cientistas não são paladinos absolutos da ética. Sabem de um fato real objetivo, são mais claros quanto ao risco enfrentado, entretanto, não são habitantes externos do nosso mundinho caótico. 

Houve quem apontasse a questão feminista: ninguém consegue ouvir a descobridora do asteroide porque ela é mulher e passional na exposição. 

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Leonardo DiCaprio eJennifer Lawrence interpretam cientistas tentando alertar o mundo para um desastre em 'Não Olhe para Cima'. Foto: Niko Tavernise/Netflix

É obra conservadora que aposta na família tradicional, bênção de ação de graças e união em torno dos valores fundantes dos EUA? A cena do jantar em família com uma belíssima oração parece ser o momento mais poético de toda a obra.  As críticas sobram para os modelos de empreendedores com algumas patologias psíquicas e de sociabilidade deficiente. O dono da megaempresa e mago da tecnologia é alguém desligado do real, excêntrico e maligno. Incapaz de qualquer empatia até com o fim da sua aliada política. Vaidoso e milionário, sabe explorar as deficiências do seu consumidor ávido em ser conduzido a uma “servidão voluntária”. 

Haveria uma vida superior entre os ricos? Cate Blanchett (a jornalista) narra sua trajetória biográfica: dinheiro, vários mestrados, casos com dois ex-presidentes, a posse de dois quadros de Monet, etc. Leonardo Di Caprio é doutor em astronomia e leva uma existência a mais banal possível. As duas narrativas feitas na cama serviriam para ressaltar o voyeurismo crescente de todos pelo espetáculo também na vivência pessoal? Uma descreve grandes experiências e posses; outro, a narrativa da microfísica da existência comum. Ambos são problemáticos. 

Claro que existe uma intenção política de pensar o momento conservador nos EUA e no mundo. Parece ser, igualmente, uma metralhadora sobre o caráter medíocre de tudo: dos cientistas, dos capitalistas, dos políticos, dos jornalistas, da cultura pop e até do público em si. O filme é um manifesto político-cultural sobre tudo o que estamos vivendo. 

Se eu pensasse de forma muito básica, diria que se trata de um mundo que não deseja olhar para cima (o real, o corpo celeste que se aproxima, o fim próximo) e daqueles que fazem uma leitura ideológica dos dados objetivos e pensam que o desastre é uma narrativa, algo inventado na China ou pela conspiração da imprensa. Isso seria fácil, pois teríamos, no caso, o certo (a ciência, os dados objetivos e o mundo externo) e uma construção delirante de outro grupo. No filme, o drama está na proximidade dos dois grupos.

Sim. Um olha para cima, outro, para baixo, ambos funcionam a partir da sedução da fama, do diálogo ressentido com o sucesso e com o fracasso, a sociedade do espetáculo, a emotividade teatral e a incapacidade de existir sem a imersão no mundo líquido, para fazer uma concessão a Bauman. Claro, surge um grupo produtor do filme-catástrofe que, querendo público das duas tribos, lança a campanha de não olhar nem para cima nem para baixo. Seria, quem sabe, a neutralidade estratégica de mercado. 

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Durante todo o longo filme, pensei na crítica ácida de Alexis de Tocqueville sobre a democracia na América. Ele analisou em profundidade, porém, jamais ficou encantado pelo acesso das massas ao poder. Estava ao lado de Platão e outros que sempre viram o voto universal com profundas reservas. Ditaduras são cruéis e equivocadas. Democracias levam a conviver de forma quase crua com a fulanização do mundo. 

Não tem jeito. Enquanto o meteoro não colocar um epílogo na nossa dúvida, o jeito é olhar para as eleições com o máximo de senso crítico e escolher pessoas aptas. Nossa esperança é que o nosso fim não esteja nas urnas, ao menos.

Opinião por Leandro Karnal
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