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Olhar feminino sai vitorioso

Homens predominam nos júris, mas vencem os filmes de e sobre mulheres

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Havia gente rindo à toa no final da cerimônia de premiação da 36.ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, no Cinesesc, quinta-feira à noite. A jornalista Elaine Guerini foi uma que tentou colocar em votação, no júri da crítica, o longa israelense Preenchendo o Vazio, mas se chocou com a intransigência de colegas que não queriam nem ouvir falar do filme de Rama Burshtein. Após a premiação, em que Preenchendo o Vazio foi vencedor do Troféu Bandeira Paulista como melhor ficção, o diretor Cao Hamburger, integrante do júri, disse ao repórter que entendia as restrições, principalmente masculinas, ao feminismo de Rama. Você ainda tem chance de conferir as qualidades de Preenchendo o Vazio. O filme integra a repescagem da Mostra e terá sessão amanhã às 21h30, no Cinesesc.Foi a mais discreta das premiações da Mostra - e sem trapalhadas. Rubens Ewald Filho foi o mestre de cerimônias e Renata Almeida juntou-se a ele, substituindo Marina Person, que chegou tarde. Renata lembrou que Leon Cakoff - seu companheiro de arte e vida - criou o Troféu Humanidade para destacar a contribuição de artistas excepcionais. Há dois anos, Leon e ela tentaram trazer ao Brasil "essa atriz mítica", como a definiu, mas Claudia Cardinale tinha outros compromissos e não pôde aceitar. "Leon ficaria muito contente de que ela esteja aqui para receber o prêmio que agora tem seu nome", disse a emocionada sra. Mostra.O público levantou-se para aplaudir de pé a estrela que trabalhou com os maiores diretores da Itália e de Hollywood - Luchino Visconti, Federico Fellini, Mauro Bolognini, Marco Bellocchio, Luigi Comencini, Mario Monicelli, Blake Edwards, Richard Brooks, Henry Hathaway. A lista é muito maior e poderia ocupar quase todo o espaço do texto, somente citando os títulos dos filmes e os nomes dos autores. Claudia foi sucinta. Embora tenha filmado no Brasil (Fitzcarraldo, de Werner Herzog, e Uma Rosa para Todos, de Franco Rossi), disse que lamentava não poder agradecer em português. Em italiano - ela deu suas entrevistas em francês e inglês -, acrescentou que estava lisonjeada e feliz. Claudia gostou tanto de São Paulo que abriu sua passagem e, em vez de voltar ontem para Paris - onde mora -, viaja amanhã. Quer desfrutar um pouco mais da cidade.O prêmio da crítica contemplou um grande da Itália - Marco Bellocchio -, por seu drama da eutanásia, A Bela Que Dorme. Definir o filme dessa maneira é reducionismo - Bellocchio usa a discussão sobre o direito à morte para seguir com o que vem fazendo há décadas. Se há um autor que tem dado seu testemunho vigoroso sobre a política do país, e sem transigir com a estética, é ele. A crítica também outorgou uma menção especial a Perder a Razão, do belga Joachim Lafosse, justamente como estímulo à distribuição do filme no Brasil. Lafosse está longe de ser unanimidade - como Rama Burshtein também não é -, mas sua história de um casal de jovens apaixonados que depende financeiramente de um médico mais velho possui defensores ardorosos.O júri integrado pelo ator Burghart Klaussner (dos filmes de Michael Haneke), pelos diretores Danis Tanovic, Jan Harlan e Cao Hamburger e por Kanako Hayashi, que preside o Festival de Tóquio, outorgou uma menção ao ator Edin Hasanovic, do filme alemão O Peso da Culpa. O outro júri, integrado pelo criador do É Tudo Verdade, Amir Labaki, outorgou a We Came Home, de Ariana Delawari, o Troféu Bandeira Paulista de melhor documentário.O design do troféu é da artista plástica Tomie Ohtake e a competição da Mostra contempla somente novos diretores (até o segundo filme), pré-selecionados pelo público. Ariana, cantora, compositora e diretora, nasceu em Los Angeles, filha de pais afegãos. Em seu filme premiado, ela conta uma história do Afeganistão, mostrando como os pais voltaram para casa, no clima de paranoia após o 11 de Setembro, para ajudar na reconstrução do país que havia sido invadido pelos soviéticos e era dominado pelo Talibã. A prisão de seu pai foi um duro golpe para Ariana. Ela também é autora de um álbum com músicos de Cabul que foi apadrinhado por ninguém menos que David Lynch.Casamento perfeito. Embora os júris que contemplaram ficção e documentário fossem diferentes, ambos premiaram mulheres dilaceradas - Ariana, no jogo de dois países, duas culturas, e Shira, a heroína de Preenchendo o Vazio, desconsiderada pela própria família de ortodoxos. Shira está para se casar, realizando um sonho, quando sua irmã morre no parto e a mãe da protagonista cobra dela que sacrifique os sentimentos, por meio de um casamento arranjado com o cunhado, para garantir que o bebê permaneça na família. Sem nenhuma pressão sobre os júris, a premiação da Mostra contempla aquilo que se desenhava no seu começo, há duas semanas.Primeira Mostra realizada por Renata Almeida após a morte do criador do evento - Leon Cakoff -, a 36.ª de cara se definiu por um olhar feminino, se não feminista. Dos mais de 350 filmes exibidos, 60 foram dirigidos por mulheres e a maioria tem personagens femininas como protagonistas. O olhar masculino, predominante nos dois júris, avalizou a pegada feminina. Foi um casamento perfeito. Assim como o júri e os críticos, o público também contempla seus preferidos. A seleção dos jurados que atribuem o Troféu Bandeira Paulista é feita sobre a escolha do público, num universo restrito - o dos novos diretores. No quadro geral da Mostra, o prêmio do público teve quatro vencedores. Na categoria Nacionais, Colegas, de Marcelo Galvão, foi a melhor ficção, e Sementes do Nosso Quintal, de Fernanda Heinz Figueiredo, o melhor documentário. Entre os internacionais, venceram No, de Pablo Larraín, como melhor ficção, e A Copa Esquecida, de Lorenzo Garzella e Filippo Macelloni, o melhor documentário. Colegas, sobre as aventuras de um trio de downianos, venceu o Prêmio da Juventude.Pela circunstância de possuir dotação em dinheiro - R$ 45 mil para melhor ficção, R$ 30 mil para melhor documentário -, o Prêmio Itamaraty, para produções nacionais, sempre desperta frisson. Venceram o admirável O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, e Francisco Brennand, de Mariana Brennand Fortes. A Mostra prossegue com a repescagem - até amanhã, na Sala Cinemateca, até quinta-feira, no Cinesesc. Entre os filmes que você pode (re)ver há um programa suntuoso. Amanhã, às 15h50 na sala da Rua Augusta - no esplendor da projeção digital em 4-K do Cinesesc, o deserto de David Lean nunca foi mais grandioso. Obra-prima é pouco para Lawrence da Arábia.

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