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Obras-primas de Fellini, De Sica, Rossellini e Moretti saem em DVD

Lançamentos põem à disposição do público filmes italianos que marcaram a história do cinema, como Ladrões de Bicicletas, Roma, Cidade Aberta e Oito e Meio

Por Agencia Estado
Atualização:

André Bazin, o grande crítico, fazia a cobertura do Festival de Cannes de 1946. Ficou empolgado com o filme italiano que ganhou o Grande Prêmio, já que, naquele ano, ainda não havia sido criada a Palma de Ouro. Diante de Roma, Cidade Aberta, o maravilhado Bazin foi definitivo: Roberto Rossellini estava criando ali um novo realismo. Pode ser que essa versão não seja a verdadeira e o rótulo de neo-realismo tenha sido criado na Itália, para definir o conjunto de filmes que procuravam colocar na tela o desejo de renascimento do país devastado na 2.ª Grande Guerra. Eram filmes que celebravam uma estética da urgência, feitos com técnica precária e atores não-profissionais. Mudaram a face do cinema, oferecendo-se como alternativa (verista) às fantasias produzidas pela máquina de sonho de Hollywood. Continental e Versátil fazem a revisão do cinema italiano e colocam, nas locadoras e lojas especializadas, DVDs cheios de extras com títulos clássicos do neo-realismo e também das transformações que ocorreram nas décadas seguintes, desviando o movimento da ortodoxia e abrindo-o para as mudanças que ocorriam na Itália e no mundo. A Continental está lançando Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica, e Oito e Meio, de Federico Fellini. A Versátil amplia o leque: parte de Roma, Cidade Aberta, numa edição de colecionador, atravessa os anos 1950 com outro Fellini, As Noites de Cabíria, chega aos 1970 com um terceiro Fellini, Ensaio de Orquestra, e ingressa nos 1990 com Nanni Moretti, Aprile. Só para dar água na boca: o disco digital de Cabíria inclui o documentário Fellini, um Auto-Retrato, que, com o título original de Fellini Racconta - Un Autoritratto Ritrovato, foi produzido na Itália, pela RAI, no ano 2000, com base em entrevistas e documentos deixados pelo grande diretor. Os extras de Cabíria prosseguem com trailer de cinema, filmografia ilustrada, um dicionário felliniano e até os desenhos que o cineasta gostava de fazer, à maneira de um storyboard do qual se afastava no set, para dar plena vazão às suas fantasias. O mais belo presente de As Noites de Cabíria talvez seja, porém, a própria Cabíria, isto é, Giulietta Masina, falando do marido famoso, um gênio do cinema. Foi uma linda história de amor, a desses dois. Fellini, descobriu-se após a sua morte, tinha uma amante havia mais de 30 anos para satisfazer suas necessidades carnais. Nunca se desligou de Giulietta, talvez porque ela representasse, para ele, a alma - como prova a Gelsomina de A Estrada da Vida. Pode ser que o próprio Fellini fosse um pouco o bruto Zampano (Anthony Quinn) daquela obra-prima. Zampano, o corpo, precisava perder Gelsomina, a alma, para dar-se conta do que significava para ele aquela mulher pequenininha e amorosa. Fellini nunca quis correr esse risco. Giulietta morreu de amor - os médicos dizem que foi de insuficiência vascular, provocada por estresse - poucos meses após a morte do marido. Rossellini e De Sica colocaram na Itália a urgência do país destruído na guerra. Filmaram histórias de resistência ao nazifascismo e de desemprego. Quem quiser entender a Itália do pós-guerra tem de tomar Roma, Cidade Aberta e Ladrões de Bicicletas como referências. Rossellini ainda iria radicalizar sua tendência de desdramatização do roteiro, que tanto influenciou um Jean-Luc Godard, por exemplo, no alvorecer da nouvelle vague. O neo-realismo e a nouvelle vague seriam decisivos para a explosão dos novos cinemas que irromperam no mundo nos anos 1960, entre eles o Cinema Novo brasileiro. Na década anterior, a herança neo-realista já inspirava Nelson Pereira dos Santos, quando fez Rio 40 Graus e Rio Zona Norte. Conta a lenda que De Sica fez todo tipo de ameaça para arrancar do pequeno Enzo Staiola aquela expressão que, no final de Ladrões de Bicicletas, faz parte das emoções memoráveis que um espectador carrega pela vida. O menino que dá a mão ao pai humilhado torna-se ali precocemente adulto. Sua infância foi assassinada pela realidade brutal. Basta andar nas ruas brasileiras para perceber que a lição (estética e moral) de De Sica continua atual, em plena era da globalização, mais de 50 anos depois (Ladrões é de 1948). Mas a Itália mudou, nos anos 1950. Amparada pelo Plano Marshall, quando os americanos colocaram rios de dinheiro na Europa para fazer frente ao avanço comunista, a Itália dos miseráveis tornou-se um país de remediados e, logo, de ricos - pelo menos aquela camada que, em todas as sociedades, detém o poder. Realismo interior - Luchino Visconti, que havia antecipado o neo-realismo com Ossessione, em 1942, foi dos primeiros a percebê-lo, quando fez Sedução da Carne, em 1954. No ano anterior, Fellini já havia feito Os Boas-Vidas e, no mesmo ano, alcançou verdadeira consagração com A Estrada da Vida. Também em 1954, Rossellini dirigiu Viagem à Itália e, anterior a todos eles, Michelangelo Antonioni fez Crimes d´Alma em 1950. O filme acaba de ser restaurado pela Cinemateca de Bolonha. Foi exibido no recente Festival de Cannes, numa cópia estalando de nova. Antonioni e Fellini desviaram o cinema italiano do realismo social, fizeram com que ingressasse num realismo da pessoa, o chamado realismo interior. Em 1957, Fellini voltou-se sobre si mesmo e dedicou um filme inteiro à prostituta que irrompia na noite de Abismo de um Sonho, quando o desesperado Leopoldo Trieste procurava numa Roma hostil a mulher com quem se havia casado havia pouco. Brunella Bovo sumia na cidade grande, disposta a encontrar o xeque branco das fotonovelas que a encantavam, durante uma visita do casal ao Vaticano, para receber a bênção do papa. Em crise, Trieste vagava na noite até encontrar a prostituta interpretada por Giulietta Masina. Assessorado por Pier Paolo Pasolini no roteiro, Fellini retomou a personagem e criou As Noites de Cabíria. O incrível é que pensou na personagem, mas não na atriz. Escreveu o filme para Anna Magnani. Só depois que ela disse não, Fellini descobriu que Cabíria estava ao lado dele. Com este filme, o diretor ganhou seu segundo Oscar da Academia de Hollywood (após A Estrada da Vida). Receberia mais dois (por Oito e Meio e Amarcord, nos anos 1960 e 1970) e ainda um quinto, de carreira, por sua excepcional contribuição à arte e à indústria do cinema. Cabíria é muito mais do que a história de uma prostituta enganada pelos homens. Sua trajetória se assemelha muito mais à via-crúcis de um anjo de subúrbio nas ruas de Roma. Isso fica mais claro agora, na versão restaurada que repôs o personagem do homem que distribui alimento aos sem-teto. Cabíria não entende o mundo e acaba vítima dele. É uma idéia pasoliniana, mas vem de Fellini o desfecho, quando o olhar de Giulietta anuncia o milagre da esperança. Zampano também tocava o solo no fim de A Estrada da Vida, retirando daí a energia para renascer. Os outros Fellinis lançados em DVDs são obras de outra ambição. E aqui cabe um parêntese: há pouco, A Doce Vida também saiu em DVD, numa coleção popular. Antes não tivesse saído. A qualidade das imagens, das legendas, nada fazia justiça ao filme. O melhor era mesmo o fascículo que acompanhava o disco digital. Oito e Meio, para muitos críticos o melhor Fellini - o meio do título é por causa de Mulheres e Luzes, que ele co-dirigiu com Alberto Lattuada e não pelo episódio de Boccaccio 70 -, prossegue com a autobiografia que, vindo de Os Boas-Vidas, atravessa A Doce Vida. Desta vez, Fellini projeta-se em Guido Anselmi, diretor em crise de inspiração (e interpretado por seu alter ego nas telas, Marcello Mastroianni). Ensaio de Orquestra talvez seja o Fellini mais político. Ele tenta entender o que se passava na Itália, no fim dos anos 1970, quando a corrupção e o terrorismo ameaçavam o Estado democrático. Para isso, trata de relações de poder usando, metaforicamente, uma orquestra, na qual o maestro se comporta como ditador. Todos esses filmes confirmam a importância da música na obra felliniana. E, quando se fala em música nos filmes de Fellini, o nome é um só: Nino Rota. Em Ensaio de Orquestra, ouvem-se frases musicais, adequadas a cada grupo de instrumentos. Só no fim, entra a partitura inteira e ela é admirável. Fellini dedicou o filme ao compositor, que morreu antes da estréia. Como o grande diretor, Nanni Moretti também acredita num cinema confessional, nos limites do autobiográfico, para ser autoral e sincero. Aprile, depois de Caro Diário, trata do nascimento do primeiro filme de Moretti e do desejo dele de realizar um musical sobre um padeiro trotskista. A grande discussão, porém, é política: ele investe tanto contra o discurso enganador da direita como contra a passividade da esquerda. Tomando por base a eleição de Silvio Berlusconi, proprietário de três redes de televisão, ele fala sobre o que deveria ser a TV num sistema realmente democrático. Tire alguns dados específicos que vinculam a fala à Itália e ele poderia estar falando sobre o Brasil. Serviço - As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria). Itália, 1957. Oito e Meio (Otto e Mezzo). Itália, 1962. Ensaio de Orquestra (Prova di Orchestra). Itália, 1979. Todos de Federico Fellini. O 1.º e o 3.º, DVDs da Versátil, o 2.º, da Continental, R$ 35 cada um. Ladrões de Bicicletas (Ladri di Biciclette), de Vittorio De Sica. Itália, 1948. Continental. Aprile, de Nanni Moretti. Itália, 1996. Versátil. Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta), de Roberto Rossellini. Itália, 1946. Versátil.

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