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Obra revela Ubaldo como leitor erudito

Leitor de Homero, de Stevenson, de Shakespeare (que leu aos 12 anos), Ubaldo adiciona aos seus escritos pensamentos de filósofos prediletos, como Schopenhauer e Kierkegaard

Por Agencia Estado
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A doce figura, que dialoga com os leitores sobre problemas cotidianos na coluna dominical do jornal O Estado de S. Paulo, é apenas uma faceta do escritor João Ubaldo Ribeiro. Se nas páginas do jornal ele prefere assuntos prosaicos, em seus livros o autor revela, de uma forma sutil, uma profunda erudição - leitor de Homero, de Stevenson, de Shakespeare (que leu aos 12 anos), Ubaldo adiciona aos seus escritos pensamentos de filósofos prediletos, como Schopenhauer e Kierkegaard. É o que revelam as primeiras páginas de Diário do Farol, em que o narrador revela seu azedume com a vida e as pessoas. Enojado com a civilização, o clérigo detalha seu pensamento a respeito dos conceitos que rodeiam os homens. A começar pela definição de bem e mal - ele não esconde "a vontade de enfrentar e expor o medo embutido na existência, o medo perene que não cessa de assombrar cada um e com o qual raramente se aprende a lidar com eficiência". O clérigo defende que o mal é a parte mais enraizada da natureza humana e que o leitor perceberá, se persistir na leitura, que o mal é o bem e o bem é o mal. "São ambos nomes para as mesmas coisas", adverte ele que, apesar de dominado pela aversão à raça humana, sustenta-se em uma prosa simples e (na medida do possível) elegante, semelhante à do filósofo francês Michel de Montaigne, que é rapidamente citado, aliás, nas primeiras páginas. Montaigne é um nome admirado por Ubaldo, que o considera dono de um espírito claro, honesto, observador, erudito, conhecedor das paixões e da história humanas, como confessou em uma de suas crônicas. As referências filosóficas continuam páginas à frente, em momentos de fina ironia. É o caso, por exemplo, daquele em que o narrador, em uma de suas várias agressões dirigidas aos leitores, confessa seu desprezo pelo uso de parênteses. De quebra, ele exibe mais um pouco de sua vasta cultura: "Schopenhauer, cuja obra, não sei por quê, assim como a de Kierkegaard e a de Camus, li toda, diz, num livro mesquinho e bilioso como ele era, que quem usa parênteses não sabe escrever." A escrita raivosa é a forma com que o narrador (e Ubaldo por extensão) dialoga com o leitor para incitá-lo com uma realidade na qual não há bem nem mal, e assim tentar demovê-lo de qualquer noção redentora. Há resquícios de provocação em cada caso, em cada situação descrita pelo clérigo que, já planejando a confecção de suas memórias, decide chamar o farol da ilha, onde mora sozinho, de Lúcifer ("aquele que detém a Luz"), um prazer que só se realmente completa com a indignação de quem lê os manuscritos.

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