Obra mapeia tesouros da literatura polonesa

Livro recupera das primeiras vozes das letras polonesas às contemporâneas, passando pelos ganhadores do Nobel Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska

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Por Agencia Estado
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Na Polônia, isto é, em lugar nenhum, escreveu o dramaturgo francês Alfred Jarry, com sua habitual acidez, em 1897. Depois de mil anos de história, em que se dividiu, se deslocou, se perdeu e voltou a existir muitas vezes, só em 1918, depois da 1.ª Guerra, a Polônia viria a encontrar, enfim, um lugar mais estável no mapa-múndi. Ainda teve de se ver com os nazistas, com as décadas de dominação soviética, com muito sangue até, de fato, só mesmo com a paz de 45, chegar a ser um país inteiramente soberano. Ainda assim, Jarry exagera: ao longo de mil anos, não é o nada, mas uma história de adversidades, de feroz afirmação, de resistência obstinada, expressa numa literatura sempre vigorosa, que a Polônia tem a mostrar. Não é pouco. Para nós sul-americanos, ainda hoje, a Polônia é um país muito distante, quase inexistente, como o viu Jarry. É verdade que o papa é polonês e que Lech Walesa se tornou um símbolo universal da resistência libertária. Mas o que resta para os comuns dos mortais, além disso, é fragmento - imagem turva, imprecisa, sobretudo injusta que uma visita à literatura polonesa pode ajudar a corrigir e clarear. As primeiras vozes da literatura polonesa apareceram nos séculos 12 e 13, primeiro com um estrangeiro, Gallus Anonimus, depois com um bispo de Cracóvia, Wincenty Kadlubek, ambos narradores da lenda de um rei perverso, Popiel, que acabou sendo devorado pelos ratos. O percurso desde essas vozes remotas até as contemporâneas é traçado agora, com vigor didático e propriedade em História da Literatura Polonesa (Editora da Universidade de Brasília/UnB, 243 págs., R$ 19,20) por Henryk Siewierski, professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília, mestre em filologia polonesa e doutor pela Universidade de Cracóvia. Siewierski é tradutor de alguns dos poucos escritores poloneses já publicados no Brasil, como Bruno Schulz, Bronislaw Geremek e Tomek Trysna. Traça, desse modo, um retrato da Polônia e sua literatura não de fora, mas desde seu interior. Na Idade Média, que para a Polônia foi sobretudo "uma idade de batismo e de alfabetização", como ele diz, a literatura polonesa teve um caráter predominantemente religioso. Só com a Renascença ela sai do isolamento, principalmente pelo intercâmbio com a Itália. Mas, como Siewierski recorda, "a variedade de línguas faladas era tal que a polonidade resultava antes das experiências e idéias compartilhadas do que da língua materna". Cabe lembrar ainda que Jan Kochanowski, considerado o pai da literatura polonesa, escreveu suas primeiras obras em latim e não em polonês. Durante o barroco, período de muitas guerras, a população polonesa diminuiu de 10 para 6 milhões de habitantes. Também na época da Ilustração, a Polônia "vivia uma profunda crise política, à beira da anarquia". A intervenção russa, ditada pela czarina Catarina II, levou milhares de poloneses deportados para a Sibéria e o país chegou a perder um terço de seu território. No estranho Classicismo polonês, o gênero mais valorizado não foi nem a tragédia nem a epopéia, mas a poesia. A história do romance polonês só começa, de fato, no século 18, sobretudo com o célebre O Manuscrito Encontrado em Zaragoza, de Jan Potocki - narrativa, contudo, escrita em francês. A criação do reino da Polônia, em 1815, ao contrário do que parece indicar, aumentou ainda mais a submissão dos poloneses à Rússia. Nesse período, é em Paris que muitos escritores e artistas poloneses se refugiam para viver o romantismo, entre eles Frédéric Chopin. O modernismo polonês tem suas origens com as traduções de Poe, Baudelaire e Rimbaud. Ele é chamado também de neo-romantismo, já que se opõe à estética positivista do século 19. Independência - O primeiro grupo modernista, Henryk Siewierski recorda, pregava a autonomia da arte; depois de 1905 a tendência se inverte e os modernistas passam a fazer uma literatura engajada, processo que culminaria com a reconquista da independência, em 1918. Ainda assim, no início do período de entreguerras, ele nos lembra, as cinco regiões da Polônia tinham uma administração distinta, nelas circulavam seis moedas diferentes e o Exército falava quatro línguas! Fase que corresponde a uma grande fragmentação de estilos, fracionamento que acabou contribuindo para a aparição de escritores absolutamente ímpares como Bruno Schulz e Witold Gombrowicz. "O traço comum de tão distintos projetos antropológicos e artísticos era uma concepção do ser e do escrever como um jogo" Siewierski aponta. Quase nada mais que isso. Mas basta. No grande elenco da literatura polonesa destacam-se, antes de tudo, quatro nomes: dois poetas, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska, ambos ganhadores do Nobel de Literatura, respectivamente em 1980 e 96, e dois prosadores extraordinários, Bruno Schulz, conhecido como o Kafka polonês, e Witold Gombrowicz, que é meio polonês, meio argentino. Czeslaw Milosz adotou para si a sentença de Whitman: "Sou um poeta da realidade." Nascido na verdade na Lituânia, em 1911, Milosz é um poeta que persegue a realidade não para nela estancar, mas para chegar ao que ela guarda. "O mundo é vasto, a realidade é vasta, mas o poeta quer construir a sua visão filosófica e teológica", Siewierski distingue. Apesar disso, Milosz não é um poeta místico e sua poesia costuma ser chamada de "poesia do concreto". Em seu Tratado Poético, pode-se ler: "Perante a natureza não sou eu, tenho a marca da minha civilização." Católico declarado, ele desafia a natureza com a exuberância do imaginário cristão. Wislawa Szymborska nasceu 12 anos mais tarde, em 1923. Começa fazendo uma poesia engajada na propaganda stalinista, mas a partir de 1957, com Chamada de Yéti, muda de rumo. Com esse livro, passa a usar a poesia como instrumento de acesso a um mundo muito particular, onde o valor mais grave é a liberdade. Em Wislawa, "é a liberdade que pode levar ao encantamento, mas também ao desespero", o historiador nos lembra. Seus poemas, que misturam o sublime com a linguagem comum, são muito adequados para as traduções, um dos motivos da disseminação de seus versos no estrangeiro. Tem uma concepção trágica da existência, seu mundo é um mundo sem ilusões. "Ela finge que escreve apenas sobre as questões cotidianas, que não se preocupa com a arte poética, que escreve com facilidade e que tudo o mais é simples e mais leve do que parece ser", Siewierski comenta. De Bruno Schulz, afora as repetidas referências a Frans Kafka, pode-se dizer que o lançamento recente de sua pequena obra no Brasil pela Imago veio fazer justiça a um escritor absolutamente original. Henryk Siewierski o define como "um mágico que sabia transformar tudo em poesia". Sua obra é nutrida por um triângulo de culturas, a polonesa, a judaica e a alemã, daí a constante sensação de deslocamento e de falta de chão que ela provoca nos leitores. Os 30 contos que compõem a obra literária de Schulz estão reunidos em dois livros, Lojas de Canela e Sanatório, e quatro deles foram publicados apenas em revistas. As referências cansativas a Kafka, assim como também a Rilke e Mann, não diminuem o valor de Bruno Schulz. A esse respeito, o historiador recorda uma idéia bastante apropriada de Joseph Brodski, segundo a qual, ao contrário do que acontece com os mortais, "quanto mais o artista está endividado, mais está rico". Talvez o nome mais conhecido da literatura polonesa na América seja mesmo o de Witold Gombrowicz - ainda que no Brasil quase ninguém o conheça. Ele é ainda, dentre todos os escritores poloneses do século 20, o mais insatisfeito. "Escritor pós-moderno num meio ainda bastante pré-modernista", como Siewierski o define, Gombrowicz escreveu livros "estranhos e excêntricos", que dificilmente podem ser associados a qualquer tradição. Nascido em 1904, publicou apenas um grande livro em seu país, o romance Ferdydurke, de 1937, dois anos antes de decidir se exilar na Argentina, fugido do nazismo, onde ficou até 1963. Neste ano, viajou para Berlim onde passou 12 meses com uma bolsa da Fundação Ford e, por fim, se mudou para Vence, no sul da França, onde ficou até morrer, em 1969. Todo o interesse de Gombrowicz, conforme nota Henryk Siewierski, se concentra no homem, já que, para ele, "a natureza é inconcebível, o cosmos caótico e sem Deus". Sartre chamou os livros de Witold Gombrowicz de "máquinas infernais". O historiador nos recorda uma de suas frases mais conhecidas: "Esquecemos que ao homem cabe não só convencer ao outro homem, mas cativar, ganhar, seduzir, encantar, possuí-lo." Escrito ao longo de 13 anos, o ´Diário de Gombrowicz´ é, segundo Siewierski "sua obra mais significativa e mais enigmática". Depois de publicados em Paris, em três volumes, em 1966, eles passaram a ser contrabandeados para a Polônia, onde se tornaram uma espécie de manual do pensamento insubmisso. Mas há muito mais a descobrir e, nesse aspecto, o livro de Henryk Siewierski é apenas uma primeira chave oferecida aos leitores brasileiros mais dispostos a enfrentar o desconhecido. Serão fartamente recompensados por isso.

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