Obra de Dawkins ajuda a entender a teoria da evolução

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Por Agencia Estado
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Com 15 anos de atraso, sai no Brasil O Relojoeiro Cego, de Richard Dawkins (Editora Companhia das Letras, 496 págs., R$ 37), um dos dois melhores livros de explicação da teoria da evolução. Ironicamente, o outro é Darwin e os Grandes Enigmas da Vida, de Stephen Jay Gould (livro de 1977, publicado aqui dez anos mais tarde pela Martins Fontes). Dawkins e Gould não se bicam e, embora a controvérsia entre ambos ocupe diversas páginas de O Relojoeiro Cego, quem ler apenas um dos dois ficará sem visão abrangente das idéias de Darwin. Claro, sem deixar de ler ainda a biografia de Darwin por Adrian Desmond e James Moore e os livros do próprio Darwin, tão formidável escritor quanto cientista. O subtítulo de O Relojoeiro Cego já mostra a que Dawkins veio: ´A Teoria da Evolução contra o Desígnio Divino´. Dawkins centra fogo no poder da teoria darwiniana de liquidar a idéia de Deus. Sua insistência nessa polêmica pôde ser confirmada no último dia 15, quando escreveu no jornal inglês The Guardian que os ataques terroristas aos EUA são tragédias que apenas a oposição à religião - qualquer que seja ela - poderá evitar que ocorram de novo. Dawkins atribui à religião boa parte dos males do mundo. A ênfase, no entanto, não prejudica seu livro, seu objetivo de mostrar como o evolucionismo implica o desmonte do princípio de que uma entidade superior planejou o mundo. O que Dawkins mostra é que a natureza tem um design, sim mas que não é um design feito com um propósito prévio, com um objetivo específico. Daqui vem o título: a natureza seria programada como um relógio, mas não por uma intenção consciente. O que a teoria da evolução demonstra é que a história das espécies segue padrões mas se abre ao aleatório, num processo que é ao mesmo tempo complexo - com interações entre seus componentes que vão acumulando transformações - e adaptativo - sujeitas ao teste da sobrevivência em seu ambiente. "Variação e seleção trabalham juntas para produzir a evolução", resume Dawkins. Quando uma tendência de melhora já surge nas mutações, a seleção pode intensificar essa tendência na população que sobrevive. Temos, então, uma visão da evolução como um processo lento e gradual, mas não simplesmente linear ou cumulativo. Dawkins é um admirador desse engenho natural: "Um testemunho notável do poder da seleção natural é o fato de poderem ser encontrados na vida real numerosos exemplos nos quais linhas evolutivas independentes parecem ter convergido, saindo de pontos de partida muito diferentes (...). Essas semelhanças superficialmente convergentes são demonstrações impressionantes do poder da seleção natural para montar bons designs. Mas o fato de que os designs superficialmente semelhantes também diferem atesta suas origens e histórias evolutivas independentes." Dawkins obteve atenção mundial quando publicou em 1976 O Gene Egoísta, cuja preocupação era entender como os genes participam da seleção natural, lutando por sobreviver na geração posterior. Em O Relojoeiro Cego ele volta a essa questão da disputa entre mutação e continuidade: "Uma vez que todas as células do corpo contêm os mesmos genes, pode parecer surpreendente que não sejam todas idênticas. Isso ocorre porque para cada tipo de célula é lido um subconjunto diferente de genes, enquanto os demais são deixados de lado. (...) A forma e o comportamento de uma célula dependem de quais genes em seu interior são lidos e traduzidos para produtos protéicos. Isso, por sua vez, depende das substâncias químicas já presentes na célula." Em algumas frases, eis a importância do genoma e, principalmente, do proteoma: todos os mecanismos evolutivos ficarão mais claros. O livro mostra uma abertura no pensamento que Dawkins iniciara com O Gene Egoísta, porque nesta expressão havia uma atribuição de uma autonomia para o gene que não corresponde à realidade dos organismos complexos. Mais recentemente, Dawkins levantou a hipótese da existência de "memes", que são unidades replicáveis de idéias ou conceitos que o homem absorveria dos outros indivíduos já em sua formação biológica. Seu objetivo, afinal, é entender como se dá a relação herança vs. ambiente. Mesmo assim, o ambiente é estudado por Dawkins como uma máquina replicante, a serviço de genes que buscam a sobrevivência, e no caso do comportamento humano não há como reduzi-lo a um produto de idéias que brigam entre si pela manutenção da espécie. Curiosamente, Dawkins sofre dos problemas que vê em Gould, cuja teoria do "equilíbrio pontuado", que postula que existem saltos no processo evolutivo que o aceleram, criticou por ser imprecisa, já que dá a impressão de que vê toda a evolução como um gradualismo rápido. O ensaísmo de Gould seria às vezes distorcedor por causa de "exageros poéticos". Mas Gould corrigiu aquela imprecisão, e o próprio Dawkins fez mea-culpa por ter usado o adjetivo "egoísta" em seu primeiro livro. Além disso, Gould é um ensaísta mais vibrante que Dawkins não por ser exagerado, mas por ir mais a exemplos e por ser mais cauteloso com as ilações entre biologia e cultura. Em outro livro recém-publicado no Brasil, Previsões (editora Record), em que 30 pensadores falam sobre o futuro do conhecimento, Dawkins é mais explícito sobre suas pretensões: "Acredito que durante o século 21 o antigo problema filosófico corpo-mente venha a ser resolvido, e não resolvido por filósofos mas por cientistas." Isso explica sua ênfase no darwinismo como uma ferramenta explicativa completa mesmo para a sociedade humana. Mas, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em outubro do ano passado, ele disse que "certamente a natureza humana é muito mais que um punhado de genes" e reconheceu que "é importante notar que uma tendência biológica não significa que o comportamento correspondente seja obrigatório, que explique atitudes de cada indivíduo". Ao contrário de 25 ou 15 anos atrás, Dawkins hoje confessa estarmos longe de entender o que é esse complexo de genes, substâncias químicas e idéias chamado ser humano. Mas suas contribuições são inegáveis.

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