Obra de Borges é reeditada no Brasil

Editora Globo, que já tinha lançado suas obras completas em quatro volumes, coloca no mercado em livros separados os textos do genial escritor argentino

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Por Agencia Estado
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Mais alguns planetas no universo Borges: quis o acaso (segundo alguns, tal coisa não existe) que o relançamento das obras de Jorge Luis Borges em livros separados (pequenos, confortáveis, bons de ler) coincidisse com a chegada ao Brasil de um belo filme sobre o autor. Um Amor de Borges, de Javier Torre, foi o concorrente mais querido do recém-encerrado Festival de Gramado. Ganhou a fase latina do certame, levou o prêmio da crítica e, ainda por cima, valeu a seu ator, Jean-Pierre Noher, a mais emocionante homenagem do festival: foi aplaudido em cena aberta, e novamente, depois que a projeção terminou. Tudo isso se justifica. A interpretação de Noher é de rara sensibilidade. Encarna um Borges tímido, problemático, genial porém dominado pela mãe, às voltas com seus sentimentos pela também escritora Estela Canto. Aliás, fica muito interessante ver o filme e depois conferir a história, contada com detalhes por Estela em seu livro Borges à Contraluz, lançado aqui pela Iluminuras. Melhor ainda se comparado com o Ensaio Autobiográfico, de Borges, um dos livros relançados pela Globo. Este é um texto magnífico, escrito originalmente em inglês e publicado pela revista The New Yorker em 1970. Escrito não: ditado em inglês ao seu colaborador Norman Thomas di Giovanni. De passagem: o texto ocupa 158 páginas de livro. Deve-se louvar (e invejar) a revista que o encomenda e se dispõe a publicá-lo na íntegra. Demonstra confiança na capacidade de seus leitores de digerir um texto grande, desde que estimulante e bem escrito. Enfim, nessas páginas Borges fala de sua infância da avó inglesa (que está na origem do seu domínio do idioma inglês), da juventude passada em várias cidades européias, mas especialmente Genebra, da volta a Buenos Aires, dos amigos, do emprego como bibliotecário, do entrevero com os peronistas, da demissão. Fala de tudo, enfim. Menos de sua relação com Estela Canto, tão bem explorada no filme. Compreende-se a omissão. Mesmo com as luvas de pelica com que Torre o tratou, o assunto é delicado. O relacionamento de Borges com Estela Canto foi o encontro de dois contrários. Borges era tímido, recolhido, superintelectualizado, politicamente conservador. Estela era uma moça desenvolta, experiente, atirada e com idéias de esquerda na cabeça. Conheceram-se quando Estela, que fazia a tradução de um texto em inglês, foi pedir conselhos a Borges, expert no assunto. Namoraram, e Borges, em particular, ficou apaixonado pela moça. Gastavam o tempo em longas conversas literárias, andavam a pé por Buenos Aires, iam a café e livrarias. Quando Estela achou que já era tempo de experimentarem o sexo, Borges bateu em retirada. Tudo está no filme e também no livro. E tudo isso poderia parecer um gossip grosseiro como anedota de borracharia, não fossem a delicadeza com que Torre trata o assunto no filme, e a sinceridade de Estela, no livro. Por trás das inibições de Borges paira a grande sombra de Leonor Acevedo Borges, a mãe, que morreu aos 99 anos e tratava o escritor, quando ele já tinha 70 e estava cego, como a um garotinho. A relação de Borges com Leonor é um prato cheio para psicanalistas. Borges teve um pai de idéias anarquistas e personalidade impositiva. Quando achou que o filho já passava da idade de conhecer o sexo, levou-o a um bordel. Ou seja, fez o que mandava a boa tradição portenha, embora o fato se desse em Genebra. Borges pai era escritor e o filho, desde pequeno, sentiu-se também destinado a esse trabalho. Quando o pai morreu, a mãe dedicou-se inteiramente ao filho predestinado. Protegia-o de tudo, ainda mais quando se sabia que Borges, como o pai, parecia propenso à cegueira, o que depois se confirmou. Por isso, era previsível que tentasse mantê-lo a distância de moças estranhas como Estela Canto. Tratou-a mal e fez de tudo para separá-los. Estela relata tudo em suas memórias. Nem por isso deixa de reconhecer que Borges provavelmente não seria ninguém sem a mão forte de Leonor. Foi ela quem o conduziu na vida, mesmo que cobrando um altíssimo preço. Não por outro motivo Borges dedica à velha mãe a imponente edição de suas Obras Completas, que saiu pela Emecé argentina. No entanto, mesmo com a poderosa oposição de Leonor Acevedo, a ligação de Borges com Estela Canto parece ter sido das mais intensas, ainda que não consumada. Uma prova disso talvez esteja na literatura. Enquanto namorava Estela, Borges escrevia um dos textos mais importantes de sua vida, o conto O Aleph. O relato dá título ao livro de contos reeditado pela Globo e é, com Ficções (outra coletânea) as duas mais importantes obras de Borges - na avaliação dele mesmo, como consta do Ensaio Autobiográfico. O Aleph não é um relato qualquer. Segundo o autor, o Aleph é, para o espaço, o que a eternidade é para o tempo. Escreve assim: "Na eternidade, todo tempo - passado, presente e futuro - coexiste simultaneamente. No Aleph, a soma total do universo espacial encontra-se em uma diminuta esfera resplandecente de pouco mais de três centímetros." A totalidade do universo, portanto, num espaço mínimo do cosmo. O infinitamente grande colocado no pequeno, um tema filosófico, sem dúvida, e ótimo para ser desenvolvido por um homem apaixonado, para quem a mulher amada é o alfa e o ômega. O resto são conjecturas. Sobra o fato de que, no ato mesmo de rompimento do casal, Borges presenteou Estela com o manuscrito do conto, finalmente terminado. Estela conservou o texto longos anos e só o vendeu muito mais tarde, quando necessitada de dinheiro. Segundo o diretor Javier Torre, uma universidade inglesa pagou a Estela Canto US$ 20 mil pelo manuscrito. Além de O Aleph, este volume contém contos tão perfeitos como A Procura de Averróis, ou tão engenhosos como Emma Zunz. Neste aparece um dos personagens femininos mais bem desenvolvidos da prosa de Borges, a mulher humilhada que usa um curioso artifício para se vingar. No caso de A Procura de Averróis, Borges medita, sob a forma de ficção, acerca de um problema: como é possível a um muçulmano, como o filósofo Averróis, conceber a arte teatral se a representação da figura humana é proibida pelo islamismo? Esse tipo de problema intelectual fez a fortuna daquele que talvez seja o seu volume mais conhecido - Ficções. É uma alegria saber que se trata de um dos livros favoritos de Borges, num desses raros casos em que o gosto do autor coincide com o daquele que o lê. Há, em Ficções, traduzido por Carlos Nejar algumas das melhores páginas em prosa de Borges: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Pierre Ménard, Autor do Quixote, O Jardim de Veredas Que se Bifucam, A Biblioteca de Babel, Funes, o Memorioso, Tema do Traidor e do Herói. Estão aí alguns dos grandes temas de Borges, sem dúvida, mas o que mais salta à vista do leitor é sua disposição de pensar o impossível, desenvolver paradoxos, imaginar o que não pode ser imaginado. Seja um planeta improvável, seja um autor que reinventa tão perfeitamente um texto famoso que acaba por se confundir com o original, ou a questão dos destinos alternativos ou o excesso de memória que impede o pensamento, etc. Não são meros quebra-cabeças de uma mente excepcionalmente desenvolvida. São propostas para que cada leitor, em particular, desenvolva sua própria capacidade de ir além dos dados do dia-a-dia imediato. Esses mesmos que nos embrutecem, limitam e nos tornam dóceis. Bem, mas há também História da Eternidade, O Informe de Brodie, Livro de Areia e Elogio da Sombra, todos já lançados pela Globo. E até o fim do mês chega às livrarias A História Universal da Infâmia. Há um aspecto curioso em História da Eternidade. Pelo título - tirado do artigo que abre o volume - pensa-se numa obra de não-ficção, ensaística. E seria isso mesmo, não fosse o detalhe de que uma das características de Borges é baralhar esses limites tão estreitos entre ficção e não-ficção. Para isso utiliza vários recursos, como fazer de conta que resenha um livro imaginário, ou construindo o perfil de um personagem que saiu inteiro de sua imaginação. De Aproximação a Almotásin, por exemplo, ele diz que é "uma falsificação e um pseudo-ensaio". O texto, de fato, simula ser a resenha de um livro supostamente publicado em Bombaim, três anos antes. De modo que em História da Eternidade existe ensaio e ficção - e em geral, as duas coisas juntas. Há um enigma, digamos, estilístico, contido no ensaio-título do livro. De fato surpreende o quanto um texto tão cheio de citações possa ser ao mesmo tempo tão atraente. Borges faz uma listagem da noção de eternidade, que passa por Platão, Plotino e Santo Agostinho, chegando ao tempo circular de Nietzsche. Tem o encanto de uma conversa de bar, conduzida por um interlocutor inteligente e espirituoso. Por que isso acontece? Provavelmente porque Borges intui, e depois compreende, o sentido poético dessas antigas especulações. Sabe que a filosofia, mesmo se contraditada pela ciência moderna, conserva um toque poético irresistível. E é o poeta que habita Borges quem consegue limpar a poeira dessas velhas teorias e resgatá-las para o leitor em todo o seu encanto. São teorias que parecem ficções. Ou vice-versa. Outros textos contidos nesse volume - como o extraordinário Os Tradutores das Mil e Uma Noites - fazem o leitor vislumbrar o grande conferencista que foi Borges. O que diz parece dirigido a cada leitor em particular, como uma conversa cúmplice entre dois seres cultos, que se divertem trocando idéias sobre assuntos de interesse comum. É essa familiaridade com o tema que Borges parece compartilhar com seu interlocutor. Nada há nele de professoral, embora em nenhum momento procure esconder a vasta cultura que lastreia a fala em aparência despojada. É preciso ser realmente culto para escrever - ou falar - desse modo, sem traço de exibicionismo. No entanto, lemos em sua autobiografia que Borges tinha pavor de falar em público. Gaguejava, era tímido e travado, como no contato com as mulheres. Depois soltou-se. Como isso aconteceu? Borges já tinha 47 anos quando se tornou conferencista. Não escolheu o trabalho. Foi forçado a ele ao ficar sem emprego depois de exonerar-se da função de bibliotecário no governo Perón, em 1946. Para humilhá-lo, as autoridades o nomearam "inspetor de aves e coelhos nos mercados municipais". Borges demitiu-se. As conferências surgiram como alternativa que ele não levava muito a sério, por causa da timidez. Mas acabou se transformando em um mestre das palestras. Ganhou dinheiro com isso, viajou muito e conheceu pessoas. Mudou sua vida. Descobriu que podia encantar o público falando de suas obsessões: Swedenborg, Blake, As Mil e Uma Noites, a Cabala, A Divina Comédia, poesia germânica, sagas islandesas, facas e tigres, Heine, o expressionismo alemão e Cervantes. Hoje parece difícil acreditar que alguém possa ganhar dinheiro com esse tipo de preocupação intelectual. Mas assim era e Borges viu-se recebido na melhor sociedade por força da originalidade com que abordava a cultura humanística. Em seu Ensaio Biográfico, ele não dá motivos para essa mudança abrupta de comportamento, da timidez à fluência. Diz que foi assim e pronto. Estela Canto, como sempre, é menos lacônica. Segundo ela, Borges estava se analisando com o doutor Cohen-Miller quando conseguiu proferir sua primeira conferência. O médico, que, pouco ortodoxo, repassava o conteúdo das sessões para Estela, disse ter esperança de que Borges se desinibisse também no plano sexual. Não se sabe ao certo se o prognóstico se confirmou ou não porque logo depois Borges e Estela romperam. Enfim, um pequeno affaire, que não teria nada demais se não envolvesse um dos maiores escritores do século. O filme nos devolve esse Borges de carne e osso, frágil, inseguro e humano. Os livros nos lembram de que era um gigante. Serviço - Livros publicados pela Editora Globo: História da Eternidade, Ficções, Um Ensaio Autobiográfico, Elogio da Sombra, O Informe de Brodie, O Livro de Areia, O Aleph; Filme: Um Amor de Borges, de Javier Torre, com Jean-Pierre Noher e Ines Sastre

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