Obra de Amilcar de Castro é ponte entre gerações

Figura central na história da escultura brasileira, o artista morreu hoje de madrugada, aos 82 anos. Mestre da emoção forjada no ferro, Amilcar não só construiu sua poética própria como fez dela a ponte entre as gerações que o antecederam e as que o seguiram

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Por Agencia Estado
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Morreu hoje no início da madrugada, aos 82 anos, o escultor Amilcar de Castro. Figura singular na história da arte brasileira, Amilcar construiu ao longo de meio século de arte uma obra marcada pela concisão e pelo rigor sem, em nenhum momento, abandonar o que considerava o caráter central da obra de arte: a emoção. "Não existe inteligência se antes não há sensibilidade; não há nada no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos", afirmava ele, explicando por que sua obra - apesar de simples, construtiva e abstrata - toca tão profundamente o público. Com uma aparência tão sólida quanto as enormes chapas de ferro que dobrava com uma estranha simplicidade, transformando o espaço circundante na própria escultura, Amilcar foi vítima de uma insuficiência cardíaca, depois de ter passado duas semanas internado, após complicações decorrentes de uma angioplastia coronária. Sua morte é um choque para a classe artística, que se sente um pouco órfã com a perda de um de seus grandes mestres. Afinal, como poucos na história da arte brasileira, Amilcar conseguiu não apenas construir uma poética própria, única, mas também coloca sua obra como uma espécie de ponte entre a tradição que lhe antecede e as novas gerações que o seguiram. Figura discreta mas sempre presente, o artista protagonizou vários momentos importantes da arte brasileira desde os agitados anos 50 e serviu de inspiração para as gerações que o sucederam. É impossível hoje pensar a escultura brasileira sem posicionar-se em relação à obra de Amilcar ou analisar a história do designer no País sem lembrar-se - com saudades - da revolução gráfica que ele promoveu na diagramação do Jornal do Brasil, criando o primeiro jornal graficamente moderno do País. Era filho de um juiz, a quem acompanhava pelo interior de Minas Gerais, vendo de perto as agrugras do povo brasileiro - fato que o levou a tentar estudar Direito, até que percebeu que lhe faltava talento para isso. Após uma curta experiência como diagramador da Revista Manchete em Belo Horizonte - graças à indicação de um colega da faculdade, Amilcar chega ao Rio em 1952 e rapidamente estabelece contato com os outros participantes do movimento concretista, reunidos em torno do grupo Frente, sendo um dos signatários do Manifesto Neoconcreto, de 1956. Dentre seus professores destacam-se Alberto da Veiga Guignard, com quem aprendeu a desenhar com o grafite mais duro que havia, marcando o papel em sulcos e impossível de ser apagado - lição que considerou essencial para o caráter rigoroso assumido por sua obra posteriormente - e Frans Weissmann (convém lembrar que nesta época Weissmann ainda não era o construtivo que conhecemos hoje e que ambos trilharam seus caminhos em busca das relações entre as formas e o espaço de maneira paralela, mas independente). Mas o grande toque inicial para o escultor, que acabou levando-o a trilhar o caminho que nunca mais abandonaria, foi a descoberta da obra de Max Bill, na então recém-criada Bienal de São Paulo. Apesar do indiscutível caráter internacionalista da arte concreta e das formas abstratas, há na obra de Amilcar uma profunda relação com o Brasil, uma afirmação de uma arte de caráter nacional, tanto em termos formais quanto sociais. Admirador de Machado de Assis e do conterrâneo Guimarães Rosa, o também poeta Amilcar traduziu em seu trabalho simples e voluntarioso um certo desejo de transformação dessa herança que nos desafia. Como nosso passado colonial, que se perpetua no presente, o ferro resiste à mudança, ao gesto voluntarioso e consciente do escultor. Como bem captou o crítico Rodrigo Naves em A Forma Difícil, "sobre a clareza formal dessas peças, sobre o frescor das articulações tão límpidas pesa a lembrança de um arcaísmo social que não se pode reverter apenas com estruturas complexas e relações decididas". O material por excelência de Amilcar também remete ao caráter brasileiro de seu trabalho. Ele contava, por exemplo, que quando viveu na década de 60 nos Estados Unidos, tentou desenvolver suas esculturas em alumínio, material que detestou por "não ter caráter". Já o ferro é pura força e uma fonte de inúmeros significados. Representa o conservadorismo atávico, que o militante Amilcar - com uma permanente preocupação pública e altruísta - sempre denunciou. "A elite brasileira é a pior do mundo", afirmou certa vez em entrevista. Representa também as Minas Gerais, sua terra natal, para onde voltou em 1967 e nunca mais abandonou. Para trabalhá-lo, Amilcar, que durante décadas trabalhou em um pequeno ateliê localizado em cima de uma papelaria no centro de Belo Horizonte, transferiu-se para um belíssimo ateliê construído especialmente para ele na capital mineira. Mas mesmo assim o espaço do ateliê das galerias onde costuma expor se mostrou pequeno. Em sua última exposição, no cais do Rio de Janeiro (onde deve se instalar o Guggenheim), ele mostrou um trabalho de cortes em grandes peças, de 12 polegadas de grossura, que só podiam ser trabalhadas com guindastes especiais. Se o ferro é "teimoso", como dizia ele, Amilcar é mais. Ele faz questão, no entanto, de não humilhar o material, de preservar sua personalidade. Outra característica interessante do processo criativo do mestre mineiro é que ele não pensava como escultor. "O problema fundamental é que toda escultura que você conhece parte do volume. Eu não; parto da superfície. Faço um corte e dobro a chapa e essa dobra não só conquista o espaço, como faz com que ele atravesse a matéria", explicou em uma das últimas entrevistas que concedeu. A tenacidade e o ânimo do artista, aos 82 anos, eram algo impressionante. "Acho que arte é vida", costumava afirmar. O que significa que Amilcar continua vivo, não apenas em seu trabalho, mas no de todos aqueles que se inspiram e se alimentam dessa obra tão brasileira.

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