O último olhar de Beckett

Textos da fase final do gênio irlandês são reunidos em um volume que traz a novela Companhia, já levada ao palco e analisada por Eunice Webb, de quem sairão dois estudos sobre o Nobel de 1969

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Ao final de um longo estudo sobre os romances do escritor e dramaturgo Samuel Beckett (1906-89), o especialista em sua obra Eugene Webb, professor emérito da Universidade de Washington, concluiu que há neles "uma clara linha de desenvolvimento que gradualmente revela as implicações de certas ideias-chave". Já as suas peças "ficam dando voltas em torno de um problema central, tentando desenvolver todos os lados dele", analisa Webb, autor que terá dois livros seus sobre o irlandês lançados este ano pela Editora É Realizações: o primeiro, As Peças de Samuel Beckett, sai agora em abril. O segundo, Samuel Beckett: Um Estudo Sobre Seus Romances, está previsto para outubro.

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Em entrevista ao Sabático, Webb falou sobre ambos e comentou ainda as referências autobiográficas presentes nas narrativas do Nobel de 1969, especialmente em Companhia (Company, 1980). Produção da última fase de vida do escritor, ela está sendo lançada pela Globo Livros junto a outros contos dos anos 1980, entre os quais dois antológicos, Pra Frente o Pior (Worstward Ho, 1983) e Sobressaltos (Stirring Still, 1987/8).

Pela primeira vez em edição brasileira - à exceção do que dá título ao volume - , esses importantes escritos de Beckett estão reunidos em Companhia & Outros Textos, que acaba de chegar às livrarias. Críticos já definiram Companhia como a obra beckettiana que gravita de maneira mais explícita em torno do gênero autobiográfico. O professor Eugene Webb concorda com eles. "Diria que Companhia é mais pessoal que outros trabalhos seus, precisamente em virtude dos ecos de incidentes de sua infância", observa. Ele lembra que John Knowlson, na biografia do dramaturgo (Damned to Fame: The Life of Samuel Beckett), conta que o irlandês revelou ter deliberadamente ficcionalizado suas reminiscências nesse texto. "É uma biografia soberba, que recomendo".

O mesmo pode ser dito do estudo do professor Eugene Webb sobre a dramaturgia do Nobel. No essencial As Peças de Samuel Beckett, ele analisa desde Esperando Godot (1952), a mais célebre, até a pouco conhecida peça radiofônica Cinzas (1959), sobre as desvantagens da interação com os semelhantes - o protagonista é um homem ligeiramente parecido com o infeliz Krapp (de A Última Gravação de Krapp, peça igualmente estudada no livro).

Companhia aprofunda a natureza dos dois solitários, resignados ao papel dos indecisos no inferno dantesco, como os define Webb no volume. Tanto Krapp como o Henry de Cinzas e o "homem no escuro" de Companhia sofrem de "incapacidade ética de escolher ser ou não ser". Eles, diz Webb, vagam fora das profundezas do inferno, pois não são bons nem ruins. Simplesmente resignam-se a existir. "Beckett adorava Dante, mas não comungava do mesmo credo. Por outro lado, teve durante toda a vida um fascínio pelo fato de não acreditar naquilo que Dante acreditava - e eu acho que Beckett reconhecia o poder que tinha Dante de encontrar uma forma expressiva para essa crença".

A maioria dos personagens de Beckett, de acordo com o professor, são fascinados pela visão de unidade de Dante, embora percebam, para seu desespero, que ela se perdeu para sempre. É o que os conduz a buscar outras explicações para a existência. A frustração de ter de entender o ininteligível, conclui Webb, é inevitável. Mais cedo ou mais tarde, todos acabam como seus personagens Murphy ou Krapp, num beco sem saída, no meio da bagunça que é o mundo. Em Companhia, o indagador é um velho deitado de costas, no escuro. Há uma voz que vem das trevas e por vezes fala na segunda ou terceira pessoa - uma voz que ele não reconhece e nem pode nomear, mas que descreve seu absurdo confinamento.

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A história evolui com descrições da infância luminosa do homem no escuro - um garoto que sai de uma loja segurando a mão da mãe e contemplando o céu azul, a solidão no jardim enquanto ela prepara o chá da tarde. Num movimento antiproustiano, essas "cenas do passado" evocam a juventude de Beckett por meio de reminiscências literárias pirateadas de Yeats e fragmentos de outros textos do escritor, numa espécie de autoplágio já comentado pela crítica - que também pode ser lido como uma "reinvenção" literária.

Eugene Webb diz que o automatismo da linguagem, presente em obras como essa, é revelador. O dramaturgo não a desconstroi como um meio de "caçar o realismo até a morte", como sugere Paul Davies em Beckett after Beckett. Ele buscaria, sim, uma alternativa para o "uso exuberante da linguagem" pelo amigo James Joyce. "Beckett tentou, em sua ficção, achar um modo de desnudar a linguagem, uma das principais razões de ter começado a escrever em francês", analisa Webb. Ele, no entanto, classifica essa opção não como um artifício literário. "É possível dizer que ele estava tentando, como Mallarmé, purificar a linguagem da tribo".

Nos anos 1980, que marcam a fase final de Samuel Beckett, ele teria encontrado, segundo o professor americano, "um meio mais satisfatório de se expressar pela prosa, embora sem pretender abandonar o território descoberto e explorado em seu teatro". Tanto é verdade que Companhia foi transformado em monólogo pelo grupo experimental norte-americano Mabou Mines (com o ator Frederick Neumann e música de Philip Glass).

A prosa final de Beckett não segue a fórmula de obras dos anos 1950 como Molloy (1951), Malone Morre (1951) e O Inominável (1953). Molloy, por exemplo, ainda usa a estrutura de um gênero desgastado, o da novela detetivesca, embora empregue o monólogo interior consagrado pelo amigo Joyce. Já contos da fase derradeira, como Pra Frente o Pior e Sobressaltos, além de quebrar a coluna vertebral da metafísica, pretendem inventar uma forma sintática anticonvencional usando a língua mãe - Beckett preferia escrever em francês, mas produziu o monosssilábico Pra Frente o Pior em inglês. Talvez ele pretendesse enfatizar a frustração do narrador por sua incapacidade de decidir se segue adiante ou não. Ou proferir pelo menos uma frase que não fosse absurda, uma frase digna de ser ouvida, ainda que intraduzível.

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