
31 de dezembro de 2014 | 02h04
Mal em matemática, gostava de história social e era razoável nas composições de português, mas perdia para o Heitor Augusto e jamais conseguir ser o favorito de dona Mariola, nossa devotada professora. Uma vez escrevi uma Viagem a Lua inspirada num filme assistido no cinema Central de Juiz de Fora. A novidade não era o recontar da aventura que, décadas depois, assisti como realidade em preto e branco numa televisão em Cambridge, Massachusetts. A inovação da minha versão era a formal - escrevi "à máquina", roubando uma Olivetti negra que não sei até hoje porque meu pai guardava no fundo do seu impecável guarda-roupa.
A professora gostou da forma, mas não do conteúdo. Mas fui elogiado "pelo capricho" porque para escrever uma mera página ou duas, trabalhei toda uma tarde e tive a experiência do contato com a língua escrita a qual não tem interlocutores externos, não admite silêncios nem grandes ignorâncias. As palavras tornam-se reais, duras ou suaves e entramos em contato com uma totalidade que, no fundo - conforme descobri tempos depois -, não tem começo ou fim.
Sou, pois, do time dos pautados.
Fiz inumeráveis programas e todos os meus cursos seguiam um plano. O meu maior medo era o do "branco": não ter o que dizer diante de uma turma. Com o tempo, os programas foram virando temas jazzísticos servindo de impulso inicial porque os improvisos, atalhos, curvas, cruzamentos e invenções superavam a pauta. A aula foi mais aula quando eu era um jovem mais correto, discreto e preparado mas - em compensação - menos honesto do que esse velho pautado que sou hoje em dia.
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De onde tiro essa licença confessional? Que o leitor releia o meu título. A crônica "caiu" no "último dia" e esse é o dia mais importante do tempo que, diz Thomas Mann, não pode ser cortado à facão.
Todo "último dia" puxa para um "primeiro dia" e ambos são especiais. Marcamos a primeira e a última vez com um gesto, palavra, roupa, comida e objetos que ajudam a esconder reveladoramente a nossa impotência diante das pautas, programas, planos, preces, projetos e receitas que tanto precisamos.
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Olhando para trás neste último dia de 2014, eu posso rever alguns "últimos dias dos velhos últimos dias". Em 1948, virei ginasiano e ganhei uma caneta tinteiro de meu saudoso pai. Em 1950, entrei o ano apaixonado (pela primeira vez) e dele saí com o coração partido. Foi quando descobri que a alma, como a água, tem persistência - ela entorta, mas não quebra. Ao passo que o coração arrebenta-se quando somos derrotados por algum sofrimento. Não me esqueço do ano em que entrei menino e dele sai homem feito, ciente e consciente da sexualidade que, dizem, expulsou Adão e Eva do Éden.
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Num outro "último dia", em 1963, vivi um Natal como os dos filmes de Bing Crosby: a casa da vila estudantil de Harvard coberta de neve e o asfalto negro da rua pintado de branco reluzente. A neve, Deus meu!, caía grossa, mas em silêncio. Num outro "último dia", eu ganhei um beijo desesperado de uma moça depois de uma Missa do Galo e entendi o conto do velho e glorioso Machado de Assis. Já nesses 2000, tenho virado meus últimos dias nas alegrias de sofrimentos não previstos. Foi quando, na minha vida, entrou o Max Weber das consequências imprevisíveis dos atos que fazemos planejando e sem pensar. Pois nada escapa das cosmologias.
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Eu queria poder escrever bonito e brilhante como meus companheiros de jornal, mas não sou bom nisso. Fui, como um dia me disse agressivamente um cronista famoso, "um acadêmico". Ou seja: um bosta que escreve para ser corrigido e, pior que isso, não lido. Quem sabe faz, quem não sabe, ensina.
Como só fiz ensinar, sei que não sei.
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Eis uma pobre mensagem para um rico "último dia" de 2014. É, conforme me recordo de um poema favorito de Manuel Bandeira, a crônica do cavalinho correndo enquanto observa enojado os cavalões comendo.
"O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma - anoitecendo!"
Happy New Year, companheiros!
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