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O triste declínio de Tom Wolfe

Trinta anos depois de seu maior romance, jornalista lança ‘Sangue nas Veias’, texto didático e artificial que só afasta o leitor

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Por Redação
Atualização:

Tom Wolfe lançou, há quase trinta anos, aquele que é considerado o seu melhor romance, A Fogueira das Vaidades. Desde então, vem se ocupando em descer, degrau por degrau, do lugar de destaque a que ascendera com aquele primeiro e insuperável esforço ficcional. Um Homem por Inteiro, Eu sou Charlotte Simmons e o recém-lançado Sangue nas Veias configuram um caso único de depauperação estilística, em que os achados aos poucos se tornam truques patéticos, como se o autor norte-americano estivesse comprometido com a própria desconstrução. É algo triste de se acompanhar.

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Jornalista, autor de alguns ensaios e artigos célebres no âmbito do que se convencionou chamar de New Journalism (como os reunidos em Radical Chic), Wolfe tem um processo criativo pautado pela escolha de um ou mais temas (por exemplo: “Miami”, “caldeirão racial”), ao que se segue uma pesquisa exaustiva e, por fim, a escrita do romance propriamente dito. Não há problema algum no processo em si, cada escritor trabalha como lhe convém, mas o fato é que, a cada novo trabalho, o didatismo e a artificialidade restringiram o horizonte estético de Wolfe, tornando-o uma espécie de Glória Perez da literatura contemporânea. Sangue nas Veias é a culminação dessa involução, um objeto literário incapaz de se sustentar sobre as próprias pernas.

Emulador confesso de Balzac e Dickens, Wolfe se esforça para caracterizar a Miami deste início do século XXI numa galeria de personagens que nunca dizem a que vieram. São cabeças falantes com carimbos étnicos reluzindo em suas respectivas testas: o policial cubano, o oligarca russo, o jornalista branco, o chefe de polícia negro e por aí afora. A expressão “oligarca russo”, aliás, aparece em todo o livro, e até entrevemos certa ironia nas primeiras vezes em que ocorre. Ironia, contudo, esvaziada logo depois, e o que resta é mais um estereótipo circulando pelas páginas, o vigarista a ser alcançado pelo jornalista branco e pelo policial cubano. Estes são parceiros na revelação de um tremendo golpe no mercado de arte, que envolve falsificações de Kandinsky e Malevich.

Talvez o único personagem digno de algum interesse seja o policial, Nestor Camacho. Filho de refugiados cubanos, aculturado ao ponto de não falar espanhol, Camacho tem uma habilidade especial para se enroscar no campo minado racial. Logo no começo, resgata um pobre coitado em alto-mar, impedindo que ele chegue à terra firme e, assim, tenha a possibilidade de pedir asilo político. O resgate, transmitido ao vivo pela televisão, transforma Camacho em um herói para seus colegas de farda e em um traidor para a comunidade cubana. Mais adiante, ele se envolve noutra querela racial ao estourar heroicamente uma boca de fumo, imobilizando um traficante negro.

No entanto, com outro policial também de ascendência cubana, Camacho agride o preso com ofensas racistas. Um vídeo com a “melhor” parte do ocorrido chegará ao YouTube e por muito pouco ele não será expulso da corporação; na verdade, e eis aqui mais uma ironia cansada, Camacho se safa graças ao chefe de polícia negro.

Essa é apenas uma das várias histórias que correm paralelamente. Temos, ainda, a ex-namorada de Camacho, uma enfermeira, seu patrão e amante, um psiquiatra-celebridade que alimenta a compulsão sexual de um paciente bilionário para usá-lo como trampolim social, o pintor russo responsável pelas falsificações, o editor do Miami Herald que está sempre pisando em ovos etc. A dispersão extrema, em vez de constituir uma boa recriação literária de Miami, acaba por impedir que as várias tramas respirem e se desenvolvam de um modo minimamente crível.

O pior, contudo, está no próprio texto de Wolfe. O uso gratuito de reticências, exclamações, onomatopeias e outros recursos corroem qualquer trabalho de carpintaria literária que pudesse vicejar por ali. Um exemplo: “De repente, a resistência do outro lado da porta... já não existe! Nestor se vê cambaleando para a frente... os olhos! Ele vê um monte de olhos! E por um milissegundo vê também o brilho sombrio, azulado e doentio de um televisor, antes de se esborrachar no chão. ::::::Onde está o grandalhão? Estou dentro da casa, completamente vulnerável”. Outro exemplo : “Ela deu um sorriso sugestivo, enquanto seguia DANÇANDO tummm REBOLANDO tummm DESCENDO tummm SUBINDO tummm BOMBEANDO tummm e também girando em torno do poste”.

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Observem, no primeiro exemplo, o uso de “::::::” para explicitar a passagem da terceira para a primeira pessoa. E, no segundo, a risível caracterização de uma boate (tummm) de strip-tease. Tais expedientes poluem o romance inteiro e, longe de envolver o leitor, atiram-no para bem longe. Ao final, a impressão é de que até mesmo o tal oligarca russo desaparece não para evitar a prisão, coisa que provavelmente tiraria de letra, mas para escapar ao constrangimento de figurar em páginas tão calamitosas.

ANDRÉ DE LEONES É AUTOR DE TERRA DE CASAS VAZIAS, ENTRE OUTROS

SANGUE NAS VEIASAutor: Tom WolfeTradução: Paulo ReisEditora: Rocco (608 págs., R$ 59,50)

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