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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|O tiro no pé

Atualização:

Em 24 de outubro de 1975, há 40 anos, o diretor de jornalismo da TV Cultura Vladimir Herzog se apresentou ao DOI-Codi, depois de convocado. Os deputados da Arena, braço civil do regime militar, Wadih Helu, malufista veterano, e José Maria Marin, este mesmo que está preso na Suíça, acusado de participar de uma rede de suborno e lavagem de dinheiro nas entidades superiores do futebol, tinham discursado incriminando o jornalista a operar uma célula do Partido Comunista na emissora financiada pelo Estado.

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Agentes do DOI estavam já à caça do PCB desde 1974, quando o general Ernesto Geisel tomou posse e anunciou a abertura política lenta e gradual, que levantou a ira da linha-dura, que achava cedo, já que “a missão dada pela sociedade civil” de combater o comunismo, ideal da “Revolução” (Golpe de 1964), não se havia completado.

O comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, denunciava que tinham comunistas infiltrados no governo de São Paulo, chefiado pelo banqueiro interventor Paulo Egydio Martins. O Exército já tinha desbaratado as organizações de esquerda que defendiam a luta armada e atuavam desde 1967 em guerrilha rural e urbana, como ALN, MR-8 e VPR. Quem não morreu estava no exílio ou preso ou na selva do Araguaia, como os guerrilheiros do PCdoB.

Faltava o velho inimigo dos militares, o PCB, que, em 1935, promoveu o Levante Comunista, a Intentona, chegou a ficar dias no poder em Natal, em que foi instaurado um governo revolucionário provisório. A luta foi sangrenta no Recife e, especialmente, no Rio de Janeiro. Derrotado, o movimento foi destroçado. O partido voltou à legalidade em 1945. Elegeu um senador, Luiz Carlos Prestes, e 17 deputados constituintes, como Jorge Amado e Carlos Marighella. Com duzentos mil filiados, teve seu registro cassado novamente em 1947.

Na “ilegalidade”, liderou o movimento sindical, apoiou o Governo Jango, mas não aderiu à tese da luta armada. Rachou a esquerda. Comunistas históricos e uma juventude inspirada pela Revolução Cubana montaram organizações de esquerda armada. O PC ficou fazendo seu trabalho pragmático de panfletagem, pichações, rodando o jornal Voz Operária, sem causar sérios danos ao regime.

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Mesmo assim, os aparelhos de repressão, ociosos depois de anos de “combate ao terror”, como diziam, com uma máquina de moer carne à espera de qualquer inimigo, elegeu o PCB a vítima e fez um rapa. A impressão que se tinha era de que os militares pensaram numa “solução final”: eliminar opositores antes de devolver o poder aos civis.

Só da minha escola, Colégio Santa Cruz, em que, aliás, estudavam os filhos do governador e do prefeito, Olavo Setúbal, dois professores foram presos diante dos estudantes, que acompanharam perplexos seus mestres de literatura e história algemados caminharem escoltados de cabeça baixa pelos gramados da escola, até viaturas de chapa fria. Eram do PC.

A perseguição não fazia sentido. Mesmo em países da OTAN, no auge da guerra fria, partidos comunistas participavam da vida democrática, como França e Itália. Até nos Estados Unidos, que os combatiam, o PCUSA (Partido Comunista dos Estados Unidos) tinha sede em Nova York e registro desde 1919. Edita até hoje a (boa) revista Political Affairs e o jornal Peoples’s World, agora diário na web. Apoiou Obama nas eleições, como toda a esquerda americana (sim, ela existe e é grande). O capitalismo inteligente preferia ver seus adversários na legalidade.

Herzog ficou preso com Rodolfo Konder, que, de 1993 a 96, virou (um bom) secretário Municipal da Cultura de Paulo Maluf, levou um monte de comunista para trabalhar com ele, continuou com Celso Pitta até 2000 e morreu em 2014. Konder ficou pendurado tanto tempo no pau de arara que contava, com uma dolorida ironia, que se acostumara a ver as horas de cabeça pra baixo, já que tinha um relógio de parede na sala de tortura do DOI.

Konder viu Herzog e ouviu seus gritos. E ouviu o silêncio posterior. No dia seguinte, o SNI recebeu a mensagem: “O jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI-Codi II Exército”. Fotos foram distribuídas mostrando a cadeira em pé da qual ele teria se jogado. Pelo laudo do IML, instituto acostumado a forjar laudos para abafar casos de tortura, Herzog se enforcou com a cinta do macacão de preso, que amarrou na grade da janela a 1m63 de altura.

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Quem passou pelo DOI logo notou a farsa: o macacão dos prisioneiros não tinha cinto, e tudo que se parecesse com uma corda era retirado, como cadarços. O rabino Henry Sobel, junto com especialistas na preparação do corpo para funerais judaicos, viu as marcas da tortura.

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No dia 31, uma massa de pessoas marchou silenciosamente para a Praça da Sé. Na Catedral, um ato inter-religioso, liderado por Dom Paulo Evaristo Arns, rezou a missa com Sobel e o pastor James Wright. Não cabia mais ninguém na abafada catedral. O secretário de Segurança Pública, coronel Erasmo Dias, bloqueou a cidade com barreiras, travando o trânsito.

Na praça, Tropa de Choque cercava a igreja com cavalos e cachorros. Pedíamos educadamente licença e entrávamos. Dez mil pessoas se acotovelaram dentro. “Ratos”, como chamávamos os agentes do DOPS, nos fotografavam e filmavam. Parte dos manifestantes ficou pelas escadarias, encarando a polícia sem provocar. Ninguém estava com medo. O regime se esgotara. A nossa paciência, também. Foi primeira grande manifestação da sociedade civil unida contra a ditadura, que começava a ruir lenta e gradualmente.

O PCB assim com seu racha, o PCdoB, estão na legalidade já há décadas. O PCdoB até participa do governo federal. Já o PPS, oriundo do PCB, é oposição ao governo. Como o PSB, Partido Socialista Brasileiro. O PSTU, PSOL e o PCO seguem uma cartilha de esquerda independente. E o mundo continua a girar.

A morte de Herzog teve um propósito: nos uniu. Suicidaram a ditadura naquele dia. A intolerância ideológica persiste em poucos bolsões. Mas sob regras de um debate democrático que o Estado (e as Forças Armadas) garante.

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Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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