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Retratos e relatos do cotidiano

O suposto segredo da felicidade

A gente vai dando um jeito de ser feliz. Parece que não, mas dá tudo certo

Por Ruth Manus
Atualização:

Uma vez, ouvi alguém dizer que o segredo da felicidade não é o dinheiro, nem a saúde, nem a família, nem o amor. Ouvi que o verdadeiro segredo para ser feliz é a capacidade de adaptação. De fato, é mais fácil encontrar a felicidade sem dívidas, sem doença e sem solidão. Mas isso não quer dizer que quem não sofra desses males seja necessariamente uma pessoa feliz. Há muitas nuances nessa arte.

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Mas parece-me uma verdade essa história de que a nossa capacidade de aceitar mudanças é a chave para uma vida boa. Porque é possível ter amor e saúde e permitir que alguma falta de dinheiro garanta a nossa infelicidade. E é fácil ter amor e dinheiro, mas entregar os pontos por causa de uma doença. E também dá para desistir de ser feliz tendo dinheiro e saúde, mas tendo perdido alguém amado.

Na verdade, ser infeliz é muito fácil. Como li em um livro em Portuga,l “ser feliz é que é lixado”. Porque é fácil permitirmos que as coisas ruins, ainda que pequenas, dominem. A fila do banco, o abacaxi que não está doce, o atraso do marido, a calça apertada. É interessante como uma coisa chata é capaz de ofuscar todo o resto que vai bem. Quase caí nessa cilada nos últimos dias. Inverno europeu, dias chuvosos, criança em casa e... Não temos água quente. Em pleno sábado, sem assistência técnica, com jantar chique à noite. É o fim, vai dar tudo errado, não temos saída. Tínhamos. Banho na casa da sogra - talvez não a melhor saída, mas uma saída.

Segundo dia sem água quente. Contrariedade. Decidimos ferver panelas com água e jogar na banheira. Esfriavam muito mais rápido do que ferviam. Que inferno. Não ia dar certo nunca. Banho morno, com pouca água, 6 graus lá fora.

No terceiro dia, veio o técnico. Precisava de uma peça nova, ele ia procurar. Nunca mais apareceu. Mais dois dias, outro técnico. Outra busca por peça. Outra espera. Outros atrasos. Infelicidade dando as caras. Mas, curiosamente, quanto mais o tempo passava, menos falta a água quente em casa fazia. Encontramos alternativas. Banho na academia. Quatro panelões fervendo ao mesmo tempo no fogão de casa. Depois de uma semana, já havíamos aprendido a viver sem água quente correndo nos canos. Foram 13 dias assim. E o décimo terceiro foi muito mais fácil do que o primeiro.

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Percebi de forma nítida essa tal capacidade de adaptação durante esses dias. A vontade de se habituar e de encontrar soluções precisou ser mais forte do que a vontade de entregar os pontos e considerar-se vítima. Funcionou. O exemplo pode ser bobo, mas é uma pequena amostra de como conseguimos nos habituar a quase tudo. As pessoas morrem. Os relacionamentos terminam. As demissões acontecem. As doenças se alojam. A gente não tem muito como fugir. Mas a gente pode escolher entre inconformar-se para sempre, nos lamentando e barganhando, ou escolher encarar e adaptar-se.

Quando perdi uma das minhas melhores amigas, aos 18 anos, tive certeza de que a vida nunca mais faria sentido e de que o mundo nunca mais pareceria justo. Os anos passaram e eu sigo tendo minhas dúvidas acerca do mundo ser justo, mas a vida voltou tranquilamente a ter sentido. Adaptei-me à sua ausência, habituei-me às memórias, conformei-me com as saudades. Há quem diga que nós precisamos seguir em frente. Eu não sei se precisamos. Abaixar a cabeça, curtir o sofrimento e abrir mão da felicidade é uma possibilidade, quiçá até um direito. Mas não é uma boa ideia. Boa ideia é que o jogo siga. Que a gente ajeite o time mesmo com 10 jogadores, que a gente pare para amarrar a chuteira sempre que for preciso, que a gente faça um curativo no supercílio aberto e siga disposto a cabecear na área. A gente vai dando um jeito de ser feliz. Mesmo sem água quente, mesmo sem ter quem a gente ama. Parece que não, mas dá tudo certo.

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