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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O sol do meu reino

No dia seguinte à eleição, ela saboreou a vitória da noite anterior. Era amada, temida e respeitada

Atualização:

Era um ritual. Todo fim de tarde, ela pegava uma taça de vinho e subia ao teto do prédio onde era síndica. Despontava uma forma litúrgica. Tinha 68 anos, era aposentada, e vivia com certo conforto naquele prédio há quase três décadas. Tinha sido eleita, reeleita várias vezes e, tudo indicava, ficaria mais alguns anos no cargo de síndica. Amava a função. Encontrara nela uma ocupação para seus dias maduros. Ser síndica surgira ao acaso e virara algo que a deleitava muito. Tinha uma vocação absoluta para a função.

'Como confiar na Justiça diante de tamanha oscilação das suas próprias decisões? O ambiente de polarização política tem piorado ainda mais essa situação, pois a confiança das pessoas nas decisões judiciais não é livre de viés'. Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Sheila acompanhava a troca de funcionários pelas 6h da manhã. Dava instruções aos que chegavam. Ia comprar produtos e pesquisava muito. O valor do condomínio tinha diminuído sob sua administração. Negociava obras de forma exaustiva. Participava de convenções para condomínios em São Paulo, onde era informada dos fornecedores mais baratos e mais modernos de cada item daquela comunidade. Era eficaz, direta e muito zelosa. Um sonho de síndica!  A função era um serviço, claro, porém Sheila se apaixonou pelo poder que vinha com o cargo. Tinha ascendência sobre 48 apartamentos, 106 moradores, 4 funcionários fixos e uma empresa de limpeza terceirizada. Ela era o topo daquela pirâmide, a orca sobre pequenas focas e sobre o minúsculo plâncton.  Claro, era uma função desafiadora. Apaziguava brigas, determinava volume de som em festas, mandava cartinhas educadas e firmes aos rebentos mais rebeldes dos moradores. Usava de todos os recursos, para que todos continuassem em harmonia e disciplinados. Por vezes, relembrava as regras do condomínio, era boa em mostrar a lei da mesma forma que dava conselhos ou ofertava um bolinho junto com um cartão. Usava, em casos mais raros, a ameaça velada. Multiplicava o elogio público como exemplo a ser seguido. Ali havia médicos, engenheiros, professores, advogadas, administradoras, jornalistas, aposentados e exatos 16 crianças e 12 adolescentes. Havia muitas pessoas importantes, porém apenas uma Sheila! E ela, que nem faculdade tinha, desfilava pelos corredores como a imperatriz daquele reino mantido sob controle com muito esforço.  Apenas uma vez enfrentara uma guerra declarada. Era contra um jornalista no sétimo andar (alcunhado, por ela, de “bruxo do 71”). Ele a enfrentara, em algumas reuniões do condomínio, sobre questões irrelevantes. Isso era aceitável. Porém, um dia, em período de fim de mandato da síndica, anunciou ao porteiro da noite que se candidataria a suceder a Sheila. Era um golpe de Estado! Ela respirou fundo ao ouvir a fofoca e começou a atuar. Era guerra! Estava ali havia décadas e um rapaz de 36 anos que recém-chegara achava que poderia derrubar o poder constituído. Sujeito metido! Será que ele sabia o contato de todos os filhos e netos dos moradores idosos do prédio? Sabia do diagnóstico de TDAH do mais novo da dona Sandra? Dominava os meandros de um poder complexo e tradicional? Nem bolo ele fazia! Como poderia exercer o cargo que demandava tanto? Sheila pensou muito e aumentou as visitas ocasionais e conversas no corredor e na piscina. Em batalha, temos de usar os recursos disponíveis. Ao advogado conservador do 31, falou muito das convicções de esquerda do Mauro, o jornalista ousado. Para dona Ângela, católica devota, imprimiu um artigo em que o jornalista atacara a figura da Virgem Maria como um modelo arcaico para as mulheres do século 21. Para os pais de adolescentes, perguntou se sentiam o cheiro de maconha que, de vez em quando, vinha de um andar específico, o sétimo, ela não tinha certeza de qual apartamento. Bem no sétimo andar, moravam uma senhora evangélica de 83 anos, um médico de 78 com a esposa asmática, havia também um apartamento vago e, ela lembrava, no sétimo morava aquele jornalista mal escanhoado, com camiseta de folha que parecia um plátano, talvez?  Trazendo convicções políticas, insinuações morais e religiosas e seduções de bolinhos variados, Sheila atingiu seu pleno objetivo. Na reunião, em meio a falas entusiasmadas, ela levou todos os votos menos um, o do isolado e humilhado jornalista que, agora, percebia que podia entender de política em Brasília; ali, naquela arena, Sheila era a autoridade.  No dia seguinte à eleição, ela se demorou mais na laje do prédio. O sol se punha em tons alaranjados e ela saboreou a vitória da noite anterior. Era amada, temida e respeitada. Sem levantar a voz, calara a oposição. Teria mais um período comprando detergente, verificando o livro-ponto, pechinchando cloro da piscina e mandando cartinhas sobre barulho depois das 22h ou máquinas de lavar roupa ligadas aos domingos. Era a glória e ela a degustava. Olhou para o jardim lá abaixo, a piscina onde os gêmeos do 42 nadavam em silêncio e se sentiu vitoriosa, forte, empoderada e com sentido. Seu pensamento se inflou na própria desmesurada vaidade sobre seu reino e formulou ao terminar a taça: “O prédio tem um nome pretensioso: Château de Chenonceau. Ninguém sabe dizer e o carteiro vive se enganando. Poderiam rebatizar como ‘Condomínio Sheila’, algo mais fácil e até mais justo. Afinal, o condomínio sou eu”. Feliz, brindou a si e ao pôr do sol e à alegria de estar viva e poderosa do alto daquela construção onde ela continuaria mandando por mais dois anos. Era seu reino naquele mar de edifícios, só dela. É preciso ter esperança e fugir dos pequenos poderes.

LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

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