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O século das luzes de Mark Twain

Mostra na Morgan Library e lançamento das memórias guardadas desde 1910 lembram centenário do escritor

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Por Redação
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O escritor Mark Twain, morto há 100 anos, pouco antes de completar 75, é celebrado no momento em que seu país carece, e muito, de sua verve crítica. Além de reinventar a literatura norte-americana com As Aventuras de Huckleberry Finn, Twain foi um satirista, pioneiro da narrativa de viagens e um consumado performer, em palestras que fazia por todo o território dos Estados Unidos. Seu Os Inocentes no Estrangeiro, de 1869, continua a ser o mais vendido relato de viagens de um autor da América. Ele admitia ser um moralista disfarçado e condenava a falta de clareza na linguagem com a mesma indignação com que condenava o imperialismo na política externa de Theodore Roosevelt.

 

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O primeiro volume de sua autobiografia completa, cuja publicação foi autorizada por Twain só no centenário de sua morte, vai ser lançado pela Bancroft Library, da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

 

O arquivo do escritor com fortes ligações com o Sul americano, onde nasceu, e a Nova Inglaterra, lugar em que passou boa parte do final da vida, foi parar na Califórnia em 1949 por causa da amizade de sua filha Clara com um acadêmico da universidade local. Clara, a última descendente direta de Twain, nascido Samuel Langhorne Clemens, morreu em 1962.

 

Desde 2004, uma equipe de editores liderada por Robert Hirst (autor de Quem É Mark Twain?) decifra e organiza milhares de páginas da autobiografia que o primeiro escritor-celebridade dos Estados Unidos começou a planejar ainda aos 40 anos (leia entrevista nesta página). O volume 1 sai no mês que vem, com Harriet Elinor Smith à frente da edição. Os volumes 2 e 3 não têm data marcada para lançamento, mas devem ser publicados até 2013.

 

  Uma visita à majestosa Morgan Library, na Av. Madison, em Nova York, pode provocar euforia e depressão. E não falo de visitantes que sofrem de desordem bipolar. No salão onde 120 manuscritos e livros raros estão banhados em luz fraca, a evolução de uma das mais iluminadas mentes da literatura americana é tema de uma exposição recém-inaugurada, aberta até 2 de janeiro. Mark Twain: A Skeptic’s Progress (O Progresso de um Cético) é resultado da colaboração da Morgan Library com a New York Public Library, donas de importantes coleções da obra do escritor. Quem cresceu com a leitura obrigatória de Twain na escola não pode ficar indiferente. Os beneficiários da fartura de obras em domínio público, que baixaram de graça As Aventuras de Tom Sawyer ou de Huckleberry Finn nos iPads e Kindles vão se deliciar com a presença física de páginas de manuscritos e guaches nunca exibidos. O título da exposição se refere à trajetória pessoal de Twain, da infância na escravagista Hannibal - o porto à beira do rio Mississippi, fonte de inspiração para a cidade fictícia de Tom Sawyer e Huckleberry Finn - às suas inúmeras viagens e ao final da vida, em Connecticut, marcada por um desencanto com o poder do progresso para transformar a sociedade moderna. Seu desencanto não frearia se hoje assistisse na televisão a um debate recente com uma candidata ao Congresso pelo Tea Party. Na tela, a mulher expelia despautérios com tal desassombro que seu oponente se esforçava para não cair na risada. O trágico: nada ali era ficção, Mark. As eleições de 2 de novembro vão salpicar o Congresso dos Estados Unidos de figuras extremistas que fariam o autor de As Aventuras de Huckleberry Finn passar de cético a apoplético. Afinal, numa advertência na abertura desse livro, o próprio Twain ameaçava "processar" leitores que buscassem motivo para a narrativa e atirar em pessoas que tentassem definir "uma trama no romance". O que faria ele diante do fenômeno Sarah Palin? Assim como denunciou a escravidão no cativo Jim, que desliza com o menino Huck pelo Mississippi a bordo de uma jangada, Twain, quem sabe, inventaria um pescador de salmão no Alasca para expor a celebração do obscurantismo analfabeto? Na ausência de ficção contemporânea que exponha a regressão cultural em curso, a voz de Mark Twain é o antídoto para este outono da insensatez ianque. Os dois curadores da exposição na Morgan concordam com a tese? Sim. Isaac Gewirtz e Declan Kiely contam que, ao montar a exposição, eles se perguntavam constantemente como Twain reagiria às manchetes do momento. O escritor Ernest Hemingway costumava dizer que toda literatura moderna norte-americana descendia de Huck Finn: "Não havia nada antes. Não houve nada tão bom desde então." Isaac Gewirtz, da New York Public Library, discorda do slogan grandioso. "Twain foi um pioneiro ousado e é um gigante inegável das letras americanas. Mas não podemos esquecer autores como Herman Mellville e Nathaniel Hawthorne", sublinha. O curador acha que, por ter reinventado a linguagem literária, renovando a sintaxe e o vocabulário, Twain sempre aparece com mais destaque. No entanto, ele acredita que não se faz justiça a Twain por outro mérito: "Ele introduziu um novo lirismo no diálogo com a natureza", sustenta Gewirtz. Ao contrário de escritores que experimentaram com a linguagem mas têm público restrito - quantos têm um nunca aberto Finnegans Wake, do sublime irlandês James Joyce, na estante? - Twain é um autor ao mesmo tempo admirado e popular. Declan Kiely acredita que "apesar de usar uma linguagem demótica, acessível, Twain fascina o leitor educado pela complexidade da narrativa e pela caracterização sofisticada de personagens supostamente simplórios". Na autobiografia que vai ser lançada em novembro, o prolífico Mark Twain revela como superou um caso agudo de bloqueio literário. Na ocasião relatada, ele estava escrevendo As Aventuras de Tom Sawyer. Entretanto, afirma o editor Robert Hirst, o processo de começar, interromper e retomar livros se repetiria ao longo de sua obra. "Meu tanque havia secado. Estava vazio", escreveu Twain. Ele segue explicando que pegou o manuscrito de Tom Sawyer dois anos depois da paralisia criativa e fez a descoberta: "Quando o tanque seca, deixa estar, ele vai encher de novo enquanto você dorme, quando você trabalha em outras coisas e está inconsciente da lucrativa cerebração em curso". Twain, que teve um breve encontro com Sigmund Freud em Viena, no ano de 1898, acreditava no inconsciente como fonte de restauração. "É a melhor receita para bloqueio de escrita que já ouvi", comenta Robert Hirst. A psicanálise, como se sabe, tem o sonho como via de acesso ao inconsciente. Apesar de visceralmente ligado ao seu país, o sonho literário de Mark Twain não foi só americano. 'Ele queria uma autobiografia sincera', diz Robert Hirst Leia trechos da entrevista concedida por Robert Hirst, diretor do Marl Twain Project, que fala sobre o trabalho com o manuscrito da autobiografia de Twain e da relação do escritor com os leitores. O senhor e a sua equipe passaram anos debruçados sobre o manuscrito. Houve um momento de eureka, quando entenderam que tinham uma autobiografia completa? Foram dois dias até compreendermos a importância do achado. O manuscrito chegou às nossas mãos num desarranjo, faltavam páginas. Quando examinamos páginas datilografadas em 1906, com título, ordem de capítulos, vários prefácios, concluímos que estávamos diante de uma obra a ser resgatada e seguimos o plano de Twain. Porque Twain decidiu exigir um período de cem anos de espera para a publicação? Ele não queria cair no ostracismo, sabia que algumas opiniões não seriam aceitas. E não queria criar problemas para as filhas. Como trechos da autobiografia foram publicados ao longo dos anos, o senhor vê no, primeiro volume, alguma grande surpresa? Não acredito que a edição vá conter revelações bombásticas, a não ser pela franqueza da linguagem, especialmente em relação a religião. Twain era contra o cristianismo. Condenava a hipocrisia e a ganância da religião organizada em geral. Imagine se estivesse vivo... Não há nenhuma omissão das palavras do Twain no processo de edição. Por que um homem que gostava de falar em público e não se esforçava para esconder detalhes de sua vida agonizou tanto para escrever sua autobiografia? Desde 1876, ele já estava preocupado com o assunto. Queria que a autobiografia fosse abrangente e sincera. Até 1904, começou e parou várias vezes. Mas ao começar a trabalhar com Isabel Lyon, secretária de sua mulher, o projeto tomou impulso. Ele ditava e não se preocupava em editar mentalmente, foi uma liberação. Acho que o sucesso deste sistema se deve também ao fato de Isabel ter sido uma plateia. Para um homem que adorava se apresentar, isso foi um estímulo. Quando lê ou ouve o que dizem os candidatos do Tea Party hoje, o senhor resiste a imaginar o que diria Mark Twain? Acho que ele iria engajá-los em alguma forma de debate. Mas devemos nos lembrar que ele sempre ficou de olho em seu público. Havia um tipo de crítica agressiva que ele preferia não publicar porque não queria ofender seu público e também porque temia perder seu sustento. Eu me chateio quando acadêmicos o acusam de covardia porque é uma injustiça. O Twain sabia a diferença entre expressar uma opinião e publicar um livro. Escreveu o famoso ensaio United States of Lyncherdom, depois de ler sobre uma onda de linchamentos de negros no Mississippi. Pensou em expandir o trabalho na introdução de um livro mas não o fez. Sabia que ficaria completamente alienado de todo o público do sul americano. Autobiography Of Mark Twain - Volume 1. Edição: Harriet Elinor Smith (The Mark Twain Project) Editora: Bancroft Library, University of Berkeley (Importado, a partir de 15 de novembro; 760 págs., US$ 43)

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