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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|O sábio do Piemonte

Toda semana eu esperava o jornalão com a mesma indocilidade com que hoje aguardamos uma nova temporada de House of Cards. O jornalão era o italiano L’Espresso, que, trazido por malote, não chegava ao fim do dia sem ser seletivamente canibalizado por mim e alguns colegas de redação. Tinha um timaço de colaboradores. Em suas páginas descobri, em meados dos anos 1960, as críticas de cinema de Alberto Moravia, as reflexões de Giulio Carlo Argan sobre arte, as meditações de Vittorio Saltini sobre filosofia, mais as divagações de Umberto Eco sobre... tudo. 

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Atualização:

Eco nos parecia a mais inconsútil mistura de McLuhan e Roland Barthes. Com ele aprendemos uma nova forma de pensar a cultura, a sociedade de massas, a filosofia, a literatura, até uma nova maneira de ler e interpretar as histórias em quadrinhos (ou fumetti, como as chamam na Itália). De uma erudição sem pedantismo e salutarmente temperada pelo humor, o versátil sábio do Piemonte descansava de suas lucubrações semióticas fazendo paródias e pastichos (de Lolita, Shakespeare, D’Annunzio, do Nouveau Roman francês) e analisando fenômenos presumidamente fora do alcance de seu radar, como a atriz pornô La Cicciolina. Nada parecia alheio ao seu olhar e indigno de sua avaliação crítica. 

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Estimulado por seus artigos sobre Snoopy, Super-Homem e outros personagens dos comics é que me aventurei a escrever sobre histórias em quadrinhos, no jornal Correio da Manhã, por volta de 1965. Devorei Obra Aberta assim que a Du Seuil traduziu-a na França, encarei Apocalípticos e Integrados em italiano mesmo, e só tirei férias dele na fase dos romances, abrindo uma exceção para o recente e irresistível Número Zero. Ao colunista mantive fidelidade até o fim. O que vale dizer que não só devorava como arquivava La Bustina di Minerva, a coluna semanal que ele assumiu no L’Espresso quando o jornalão, há exatos 31 anos, assumiu o formato revista.

Singular rubrica: Minerva era a marca de uma caixinha (bustina) de fósforos, talvez a mais popular da Itália na época. Sempre havia uma no bolso dos fumantes para anotar telefones, lembretes e ideias para um ensaio ou romance. Eco fumava. E anotava à beça. Zeno Cosini, o paradigmático tabagista de Italo Svevo, na certa usava outra marca.

A Bustina foi seu espaço mais popular de meditações e digressões sobre os problemas do mundo contemporâneo, da sociedade italiana (terrorismo, corrupção, Berlusconi, imprensa venal, etc., em boa parte condensados no imbróglio ficcional de Número Zero), das ameaças ao livro e à leitura na era da internet, arriscando-se vez por outra em previsões nada otimistas sobre o terceiro milênio (recessão de inteligência, inflação de idiotas) e em exercícios lúdicos e instrutivos, por ele chamados de “divertimenti” e “raccontini”, que ganharam os currículos escolares italianos e mereceram uma tese acadêmica na França. Parte desse material foi compilada no segundo volume de Diário Mínimo e em outra coletânea recém-editada na Itália. 

Tentei encontrá-lo durante a Mostra Internacional de Quadrinhos de Lucca de 1969, mas tive de me contentar com a amizade de Hugo Pratt, o criador de Corto Maltese, o que, convenhamos, não é (ou foi) pouca coisa. Eco ficou para a década seguinte. Com a pauta agendada para Lucca. Falou-me dos primeiros gibis de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé, coloridos e com um cheiro inebriante, que lhe apresentou um G.I. negro chamado Joseph, quando as tropas americanas ocuparam o Piemonte, em 1945, e dos fumetti do herói fascista Dick Fulmine, sobre o qual publicara um texto, creio que na revista Linus. 

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Não nos encontramos no Brasil, embora ele aqui tenha vindo algumas vezes. O Brasil, aliás, foi o primeiro país fora da Europa que visitou na vida: em 1966, para dar aulas na Faculdade de Arquitetura da USP, a partir dos ensaios de A Estrutura Ausente. Ciceroneado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, que conhecera num café romano, dois anos antes, Eco visitou Volpi, comprou um quadro do naif paulista Neuton de Andrade, fez a ronda noturna na companhia de Giuseppe Ungaretti (de passagem por São Paulo, onde vivera e ensinara literatura italiana entre 1937 e 1942) e Andrea Bonomi, seu velho companheiro na Editora Bompiani, adorou as esticadas no João Sebastião Bar (histórico reduto da bossa nova na Pauliceia, na rua Major Sertório) e até visitou um terreiro de macumba, levado pelo físico Mário Schenberg. 

Apesar da ditadura militar, encantou-se com o País, impressionou-se com nossa “complexa cultura antropofágica” e a qualidade dos intelectuais da terra (“bem melhores que seus políticos”), mas só arriscou voltar com a família 13 anos mais tarde, sem os milicos no poder. Viagem estafante. Num mês fez cem conferências e ainda arrumou tempo para conhecer parte do Norte e do Nordeste. Não escondeu sua decepção com o crescimento vertiginoso de São Paulo e a contaminação das escolas de samba cariocas pela TV e o “estilo musical da Broadway”. Aos irmãos Campos confidenciou ter iniciado sua primeira experiência ficcional (O Nome da Rosa) e é provável que lhes tenha falado sobre a moça negra que viu entrar em transe num ritual de candomblé, episódio posteriormente incluído num capítulo de O Pêndulo de Foucault. 

Das mil e uma histórias que tinha para contar (várias delas diluídas nos capítulos iniciais de Viagem na Irrealidade Cotidiana), a que me falou mais de perto foi sua casual aparição no filme A Noite, de Antonioni. Numa cena rodada no escritório da Bompiani, em Milão, Eco, então com 29 anos de idade e ainda milhares de fios de cabelo, aparece ao lado de Jeanne Moreau, enquanto o escritor encarnado por Marcello Mastroianni dá atenção a um círculo de admiradores. 

Originalmente ele recepcionava Moreau na porta de entrada e, com falas improvisadas sem registro sonoro, dizia à personagem: “Muito prazer, gostaria que apresentá-la aos meus amigos Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Madame Lafayette”. Moreau respondia com um protocolar “enchantée”. A cada repetição exigida por Antonioni, Eco identificava os amigos com nomes diferentes: Sartre, Kant, Safo. Na quarta repetição, ao ouvir o nome de Maurice Merleau-Ponty, a atriz arregalou os olhos e perguntou: “Você também conhece ele? Maurice é muito amigo meu”.

Essa troca de diálogos ficou na sala de montagem. Na versão final de La Notte, Eco é apenas visto em duas tomadas, como um modesto figurante, ali por volta do 24.º minuto. Tem no YouTube. Confira.

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Opinião por Sérgio Augusto
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