27 de fevereiro de 2015 | 02h07
Antes do desamor, do ódio e da separação, há várias tentativas vãs. Exemplos: dormir em quartos separados; protestar contra a falta de sensibilidade do roncador (sejamos cavalheiros nesta terra de muitos machos brutos: só os marmanjos roncam); pedidos reiterados da vítima ao roncador para que este consulte um médico, etc.
Percebi a gravidade do distúrbio do sono num hotel de Caracas, há mais de duas décadas. Meu companheiro de quarto - um gigante de dois metros de altura e cento e vinte quilos - roncou durante toda a noite. Parecia que o Monte Ávila estava estremecendo, ou que um touro resfolegava na cama ao lado. Foram três noites insones numa Caracas que mal conheci, pois durante o dia eu era um zumbi de feições sombrias.
Com o passar do tempo, eu também me tornei um touro resfolegante durante a noite e um ser sonolento durante o dia. Cheguei ao cúmulo de cochilar no meio de um almoço com amigos e emitir sons cavernosos que assustaram até os mais corajosos. Desde então, fui proibido de dirigir qualquer veículo.
Uma dentista sugeriu que eu usasse um aparelho bucal para melhorar a respiração. Mas alguma coisa não deu certo com o diabo do aparelho, cujas pontas de aço feriam minha gengiva. Além disso, acordava com o maxilar inferior projetado para frente: verdadeira experiência diurna de prognatismo involuntário.
Deixei de lado o aparelho e passei uma noite no hospital, monitorado por equipamentos eletrônicos que medem as interrupções do sono. Quando fui ver o resultado dos exames, a médica mostrou o gráfico do meu sono perturbado, que mais parecia o gráfico de um vivo-morto ou de um morto-vivo, tantas eram as paradas respiratórias. Ela me deu uma explicação complicada sobre a apneia obstrutiva, o ronco e seus riscos; no fim da consulta, me disse gentilmente que eu devia escolher entre o divórcio iminente, a morte por parada cardíaca ou a maquininha.
Maquininha?
Uma espécie de "respiradouro", ela riu.
Essa engenhoca caríssima - que nenhum plano reembolsa e o SUS ignora - foi eficaz. Mas para dormir sem distúrbios, você tem que usar uma máscara conectada a um tubo por onde passa uma corrente de ar frio. Essa respiração induzida - eu teria preferido boca a boca - transforma o rosto do roncador no de um piloto de caça que rompe a barreira do som. E som é o que não falta a essas noites de livre respiração: o ronrom agudo da maquininha e o sopro grave do fluxo de ar no tubo ligado à máscara. São dezenas de decibéis ininterruptos, pois não se debela a apneia obstrutiva em silêncio absoluto.
De vez em quando sou tomado por um inconsciente impulso de rebeldia: arranco a máscara e o tubo, e desligo a engenhoca. E por uma magia - ou por algo que desconheço - desperto com a mesma máscara ligada ao tubo, e escuto o risinho vingativo da amante que passou 1.001 noites em claro, maldizendo a roncaria e ameaçando a vida amorosa.
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