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O retorno de Marcos Rey, o cronista de SP

A ficção adulta do escritor, morto em 1999, aos 74 anos, será reeditada a partir do próximo mês pela Companhia das Letras

Por Agencia Estado
Atualização:

O nome foi inspirado no do apóstolo São Marcos, autor de um dos Evangelhos da Bíblia, e no de uma imigrante italiana chamada Maria del Ré, famosa por contar boas histórias. Ao juntar o nome do primeiro ao sobrenome aportuguesado da segunda, sua bisavó, Edmundo Donato criou o pseudônimo que o tornaria famoso: Marcos Rey. Escreveu uma obra que, como poucas, apresenta um retrato despojado mas crítico da sociedade paulistana. "Ele se identificou com São Paulo", observa o também escritor Ignácio de Loyola Brandão. "Seus livros cheiravam a cidade; seus personagens estavam à nossa volta." A oportunidade de conferir o realismo crítico de Rey (como observou João Antônio) surge no próximo mês, quando a Companhia das Letras iniciar o relançamento da ficção adulta justamente com dois clássicos: Memórias de um Gigolô e Ópera de Sabão. Para agosto, estão previstos Café na Cama e o livro de contos Malditos Paulistas. A maioria dos títulos foi editada pela Ática, que ainda lançou 25 livros infanto-juvenis de grande sucesso - o campeão de vendas, O Mistério do Cinco Estrelas, atingiu, até o ano passado, a marca de 2,5 milhões de exemplares. Marcos Rey foi um raro exemplo de escritor profissional. Foi redator publicitário, fez roteiros para filmes pornográficos, escreveu histórias para Mazzaropi, além de construir uma vasta carreira na televisão para a qual escreveu tanto novelas como programas infantis. Mas foi, acima de tudo, um romancista, cujo estilo bem marcado é apreciado por um público eclético, desde infantil até adulto. São Paulo era o cenário habitual de suas histórias, nas quais ele costumava transportar o leitor para os lugares mais movimentados e ruidosos da metrópole, como observou o escritor Mário Pontes, em texto publicado no Estado. "O falar paulistano se refletiu na obra de Rey, os lugares estão todos ali, os referenciais. A cidade pulsa em torno, vivemos dentro dela, nos reconhecemos, passamos por ruas e becos e esquinas familiares", completa Loyola. "Ele escrevia em imagens." A opção era natural para o escritor - nascido no bairro paulistano do Brás, decidiu contar a história de sua cidade por meio dos livros, da mesma forma que Érico Veríssimo fez com o Rio Grande do Sul e Jorge Amado com a Bahia. Assim, em Malditos Paulistas, um carioca vem a São Paulo tentar a sorte como motorista de uma família rica do Morumbi; Esta Noite ou Nunca é ambientado na Rua do Triunfo, coração da Boca do Lixo. "Meus personagens viveram os dias do getulismo, os anos dourados de JK, da renúncia de Jânio e os 20 anos do golpe militar", afirmou Rey, em uma entrevista à Revista D?Art, em 1998. "Nenhum deles é livro político ou com pretensões históricas. É ficção viva, pura, com os pés na realidade." A capital paulista não surgia apenas como uma metrópole que representava a modernização brasileira, mas principalmente como cenário onde se misturavam elementos humanos e culturais que moldavam o próprio País. Cidade em formação, São Paulo surge universalizada como um espaço em que predominam o culto ao dinheiro, a frieza das relações humanas, o isolamento social. "A sociedade de Rey é dividida em apenas duas partes desiguais", comenta Mário Pontes. "Uma é a dos que estão no centro; a outra é a dos que estão na margem. Mas os marginais deixam de ser apenas os habitantes das favelas e dos cortiços, os excluídos da mesa na hora de repartir o bolo. Marginais são todos aqueles a quem se proíbe de realizar seus sonhos e sobreviver com dignidade, ou seja, publicitários ultrajados, jornalistas condenados a viver de bicos, escritores resignados a ganhar o pão como ghost-writers ou autores de livros de carregação." As características dos personagens surgiram a partir de observações que acumulava graças às diversas funções que exerceu ao longo da vida. Boêmio profissional, como costumava brincar, Marcos Rey contava que se inspirou em um grande amigo dos tempos de boemia, o gigolô Cláudio, para criar Mariano, protagonista de um de seus livros mais famosos, Memórias de um Gigolô, transformado em minissérie pela Globo, em 1986 - programa, aliás, que o tornou mais conhecido e aumentou a venda de seus livros, ajudando-o, no final da vida, a viver dos direitos literários. Vida alheia - Apesar dos problemas sociais, adorava São Paulo, fascinado por seus mistérios. O gosto pela pesquisa foi adquirido no curto período vivido no Rio, longe da família, em que vasculhava os segredos da vida alheia. "Quem era quem na pensão, na rua, no bairro? E a mulher que passava? Sempre de olhos abertos. Nasceram assim meus primeiros contos. Apaixonava-me por ruas - as quentes. Como a da Lapa, onde morei. O Beco das Marrecas. A Morais e Vale. A Taylor. A do Rezende. Seguia meus personagens. Fotografava-os. Que exercício!", contou o escritor para a Revista D?Art. "É por isso que ele pode ser visto, acima de tudo, como um retratista de uma época", comenta o escritor e roteirista Marçal Aquino, que considera Rey um dos melhores prosadores do País. "Basta atentar para alguns textos (como O Enterro da Cafetina ou contos como O Bar dos Cento e Tantos Dias) para constatar que ele flagrava personagens de um tempo que estava chegando ao fim. Esses personagens estavam saindo de moda, estavam se extinguindo e se debatiam contra isso." As experiências paralelas à literatura alimentavam sua ficção. Ao trabalhar no rádio, na publicidade, no cinema e na televisão, fontes essenciais para garantir sua subsistência, Marcos Rey conseguiu forjar seu estilo, desenhar a própria grife, como gostava de dizer. O fato de escrever roteiros para comédias e filmes pornôs, especialmente durante o período militar quando a censura agia impunemente, despertou a ira da crítica, que sempre acompanhou desconfiada a formação de sua carreira. "O preconceito caipira não perdoava quem se afastasse da literatura para seguir veredas mais populares", afirmou, na entrevista à Revista D?Art. "Faulkner, para viver, trabalhou nos mais infames roteiros. E não lhe atiraram pedras. Nem em Dreiser. Nem em Fitzgerald." Rey orgulhava-se de seus múltiplos trabalhos. Dizia ter criado a primeira minissérie da TV brasileira, em 1967, na Excelsior: chamava-se Os Tigres e tinha 20 capítulos. Na época, um capítulo de novela tinha entre cinco e seis cenas, que se alongavam. O motivo, contava o escritor, era permitir que o espectador tivesse tempo para atender ao telefone, ir ao banheiro ou tomar um café. O ritmo diferenciava-se do cinema. "Eu e o Carlos Zara fizemos para Os Tigres capítulos de até 40 cenas, o que foi considerado um absurdo", relembra. "Mas depois não se toleravam mais capítulos lentos nas novelas." A censura do regime militar era um grande empecilho à sua criatividade, pois influía nos personagens e na estrutura da história, sempre em nome da moral e da defesa da família. Entre 1968 e 1977, por conta dessa perseguição (foi inclusive convocado a dar depoimentos em diversas ocasiões), ficou sem publicar livros. Passou a viver de pornochanchadas, o que lhe permitiu amadurecer como escritor e criar histórias que seriam publicadas anos depois. Respeitado pelos diretores por ser um escritor de carreira, voltou à literatura com os contos de O Pêndulo da Noite e, logo em seguida, publicaria Soy Loco por Ti, América! e Ópera do Sabão. No primeiro, revela seu senso crítico ao descrever uma alucinada festa de intelectuais enquanto tanques de guerra ocupavam o País. No outro, exercita uma característica básica, o humor, que dizia ter aprendido com Machado de Assis: "Todo drama, ele dizia, tem de ter uma boa dose de humor, a melhor forma de apresentar uma crítica." Depois de uma nova participação na televisão (escrevendo, entre outros, capítulos para os infantis Vila Sésamo e Sítio do Pica-Pau Amarelo), Marcos Rey iniciou a bem-sucedida carreira de textos infanto-juvenis. Convidado pela editora Ática, escreveu O Mistério do Cinco Estrelas, um sucesso relâmpago. Fazia muitos planos quando foi surpreendido por um câncer generalizado. Cinco dias depois, a 1.º de abril de 1999, morreu aos 74 anos. O último desejo foi realizado pela mulher, Palma Bevilacqua Donato: depois de cremado o corpo, ela alugou um helicóptero e espalhou suas cinzas pela cidade que tanto amou.

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