O renovado prazer de apenas narrar

PUBLICIDADE

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
Atualização:

O início de Juliet, Nua e Crua, novo romance do inglês Nick Hornby, é instigante: o casal Duncan e Annie invade o banheiro masculino de um bar em Minneapolis onde, em um certo reservado, ele posa para uma fotografia. Não se trata de um reservado qualquer: foi ali, nos anos 1980, que o cantor Tucker Crowe decidiu repentinamente abandonar a carreira para começar uma vida de reclusão. Crowe jamais revelou o teor da epifania que o convenceu a alterar sua trajetória. E, mesmo insolúvel (ou por causa disso), o mistério alimentou o desejo do pequeno mas resoluto fã-clube do artista, reunido pela internet por Duncan e disposto a refazer continuamente todos seus passos até a opção pelo silêncio.Um dos ícones da cultura pop, Hornby, que propagou a febre de fazer listas de qualquer coisa, tornou-se famoso pela palavra direta. "Nunca me interessei pela linguagem, pois ela é apenas uma ferramenta para o que tenho a dizer", explicou ele ao Estado, em uma conversa durante a Feira de Frankfurt, em 2005. "Se minha intenção é falar sobre um copo d"água, escrevo apenas isso "um copo d"água", não preciso de mais nada."Juliet, Nua e Crua revela que, de fato, a peregrinação de Duncan e Annie é despejada sobre as páginas de forma propositalmente simples, quase sem sobressaltos. Mas o que diferencia a escrita de Hornby são em especial as pequenas digressões, que se transformam em buracos em um asfalto aparentemente perfeito. O questionamento de Annie, por exemplo. Aos poucos, ela percebe que a paixão do companheiro pelo cantor aposentado cria empecilhos em seu relacionamento. O arranhão é visível, aliás, nos primeiros parágrafos, quando Duncan, posando dentro do reservado, observa: "Se os banheiros pudessem falar, hein?", acreditando que, assim, teria finalmente a resposta para o mistério da aposentadoria. "Annie estava feliz por aquele não poder", escreve Hornby. "Duncan iria querer papear com o banheiro a noite inteira."Quando volta à Inglaterra, o casal descobre uma nova versão do álbum de maior sucesso de Crowe, batizado exatamente de Juliet. Trata-se de uma demo, mais conhecida por Naked (Nua). Assim, a versão, que se torna conhecida por Juliet, Naked (o título original do livro) agrava a crise no relacionamento do casal, especialmente quando surge uma divergências de opinião, com Duncan adorando e Annie detestando. A situação piora quando ela descobre que seu companheiro dormiu com outra mulher. É o suficiente para que uma combalida convivência de 15 anos aproxime-se do precipício. E, se o momento já é tenso, piora quando o próprio recluso, Tucker Crowe, abandona momentaneamente o silêncio autoimposto e entra em contato com Annie para elogiar sua resenha sobre o disco publicada no site de Duncan - ele se encanta com o perfeito entendimento dela sobre sua sensação de viver à deriva. Pior: com isso, inicia-se uma troca escondida de e-mails na qual uma foto enviada por Tucker vai parar na porta da geladeira do casal, sem que Duncan perceba estar diante de seu grande ídolo e futuro rival amoroso.Forma-se um triângulo, por meio do qual é escancarada para o leitor a vida reclusa de Tucker, ao mesmo tempo em que os erros do relacionamento de Annie e Duncan alteram sua rotina na decadente cidade inglesa de Goolleness, onde moram.Domínio. À medida que a leitura avança, desponta a indisfarçável satisfação de Hornby em contar essa história. Escrevendo em sua própria voz, o autor não se sente obrigado a fazer as vontades do leitor. Na verdade, ele retorna a seu velho modo de escrever como se o leitor fosse um hóspede não convidado, chegando na noite errada a uma casa escura. Cada personagem de Juliet, Nua e Crua está lá por inteiro, esperando o leitor abrir o livro, para saltar sobre ele como aquelas obras infantis que projetam castelos ocultos entre duas páginas.O escritor revela segurança ao manipular seus personagens, principalmente obsessivos como Duncan, um aficionado por internet e cultivador da música pop, figura capaz de revelar detalhes sobre os ídolos mas que se confessa incapaz de identificar os próprios problemas mais próximos. Também é hábil em descrever figuras tão emblemáticas da música como Tucker Crowe, identificado pela imprensa americana como um amálgama de Bob Dylan, Bruce Springsteen e Leonard Cohen. Se não avança nem um milímetro na qualidade de sua prosa, Nick Hornby continua imbatível na descrição límpida dos dramas humanos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.