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O religioso Mircea Eliade no território dos vampiros

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Por Redação
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SÉRIE CLÁSSICATerceiro e último volume daquela que é considerada a obra fundamental de Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas: De Maomé à Idade das Reformas, (Zahar, tradução de Roberto Cortes de Lacerda, 324 págs., R$ 49,90) acompanha a expansão do islã no Ocidente, as cruzadas e o movimento de Lutero, chegando às religiões tibetanas. Estuda ainda as heresias, a feitiçaria, a alquimia e o esoterismo. Das crenças politeísticas às monoteístas, os três livros da série fazem um apanhado completo do misticismo e da religiosidade - da Idade da Pedra às tradições herméticas antes e depois da Reforma.ANTONIO GONÇALVES FILHOOs vampiros americanos de Crepúsculo podem corresponder ao imaginário dos jovens espectadores de classe média, que já desembolsaram US$ 2 bilhões para ver os quatro filmes da série, mas em nada se parecem com os antigos sanguessugas do Leste Europeu - sensuais, libidinosos, temidos pela moral vitoriana, sobre os quais reina, absoluto, o conde Drácula, de Bram Stoker. Esgotada a série Crepúsculo, cujo epílogo estreia em 2012, os escritores já elegeram outra espécie de mortos-vivos para a próxima temporada, desenterrando os zumbis de George Romero, devidamente revistos e atualizados pelo escritor norte-americano Colson Whitehead em Zone One, fenômeno que agita o mercado editorial dos EUA (leia entrevista na página ao lado). Isso não crava uma estaca ou joga uma pá de cal sobre os descendentes de Nosferatu. Os editores estão redescobrindo os verdadeiros vampiros europeus de sua estirpe, em nada semelhantes ao centenário adolescente Edward de Crepúsculo, que repete o terceiro colegial há séculos. Tiranas, sanguinárias, promíscuas, essas criaturas sobrenaturais parecem mais próximas da paixão obsessiva da vampira de Senhorita Christina, romance escrito em 1936 pelo historiador de religiões romeno Mircea Eliade (1907-1986), nome obrigatório quando se estuda o mundo místico ancestral (a Zahar concluiu este mês a publicação de sua obra máxima, a trilogia História das Crenças e das Ideias Religiosas).A tal senhorita de Eliade é um manual de patologias sexuais. Custou ao historiador, filósofo, ensaísta e romancista uma suspensão de sete meses de suas funções como professor na Universidade de Bucareste, mas não o fez desistir da ficção. Ela não é tão densa ou importante como sua obra ensaística, mas despertou a atenção de novos cineastas e compositores de ópera, como o diretor romeno Alexandru Maftei e o músico espanhol Luis de Pablo. Senhorita Christina já teve uma versão cinematográfica em 1992 (dirigida por Viorel Sergovici) e ganha uma nova adaptação, a cargo de Maftei, com estreia prevista para 2012 (tendo no papel-título Maia Morgenstern, a mãe de Jesus em A Paixão de Cristo, de Mel Gibson). Francis Coppola adaptou A Velha Juventude (Youth Without Youth), também de Eliade, e nada indica que o romeno, a partir de agora, seja lembrado apenas por seus incontornáveis ensaios, entre eles O Sagrado e o Profano ou O Mito do Eterno Retorno, ambos publicados pela Martins Fontes.Eliade é associado automaticamente ao conceito de hierofania - manifestação do sagrado que orienta e dá sustentação ao universo, estabelecendo uma ordem no mundo profano, avesso a padrões comportamentais. O historiador foi ele mesmo objeto de uma dessas manifestações hierofânicas aos 14 anos, quando, acossado por ataques de melancolia, teve um súbito momento epifânico de paz - durante toda a vida ele tentou recapturar essa sensação, mentalizando a luz dourado-esverdeada daquela tarde especial. Considerado um dos nomes que formam a tríade de autores mais importantes da Romênia - ao lado de Cioran e Ionesco -, Eliade foi também uma figura controvertida, cujo fascínio pelo mundo natural o dividiu em três ou quatro entidades: o intelectual que dormia apenas quatro horas por noite para poder ler mais, o estudante de filosofia oriental obcecado pela experiência tântrica, o homem religioso que tentou seguir o caminho cristão e o político de ultradireita e antissemita que chegou a manifestar seu apoio a regimes totalitários.Atacado por todos os lados ao lançar Senhorita Christina, Eliade defendeu-se, dizendo que sua obra seria redescoberta por gerações posteriores. Foi, de fato, o que aconteceu. A cruel e sádica Christina, uma virulenta "strigoi" (feiticeira fantasma ou vampira, na mitologia popular romena), está mais próxima da amoralidade contemporânea que da juventude romena dos anos 1930. É, em síntese, uma morta-viva, como tantos zumbis modernos que circulam pelas metrópoles. Assassinada durante a revolução camponesa de 1907 pelo amante capataz, obrigado por ela a castigar severamente seus empregados (e também escravos sexuais), Christina volta à existência nos sonhos das mulheres de sua família, entre as quais a sobrinha Simina, de 9 anos. A garota é de uma perversidade sexual atípica para sua idade (na passagem mais explícita do romance, ela seduz o pintor Ígor e lamenta não ter um chicote nas mãos para prolongar seu sofrimento). No assombrado casarão da senhora Moscu, irmã da morta e mãe ainda de outra garota, Sanda, todas as mulheres são consumidas aos poucos pelo apetite vampiresco de Christina, que aparece igualmente nos sonhos do pintor, sua paixão transcendental, única possibilidade de construir uma ponte entre o mundo natural e sobrenatural - ou o real e o onírico. A mansão amaldiçoada e decadente às margens do Danúbio hospeda ainda o arqueólogo e professor universitário Nazarie, espécie de alter ego de Eliade.Fascinado pelo folclore romeno e pela fé cristã dos camponeses, Eliade estudou o ocultismo e, mais particularmente, a natureza dos "strigoi". Isso fica claro num dos capítulos da terceira e última parte de sua História das Crenças e das Ideias Religiosas agora lançada pela Zahar. Ao falar das tradições populares romenas, Eliade explica que esses feiticeiros vivos ou mortos (os vampiros, no último caso) possuem poderes sobrenaturais, provocam epidemias, subjugam e deformam pessoas, secam o úbere das vacas e podem transformar-se em animais, recuperando com facilidade a forma humana. Assim é Christina, a hipersexuada e animalesca senhorita de seu livo. Esse exemplo de feitiçaria romena, que escapou da Inquisição, ilustraria, segundo ele, a "autenticidade de um esquema pré-cristão baseado em viagens oníricas e num combate ritual extático". Eliade, cristão e junguiano, acreditava que o mundo moderno, dessacralizado, é incapaz de entender como o mal se manifesta. A crise da modernidade, concluiu, se deve justamente ao esquecimento dessas crenças e dos valores religiosos arcaicos que não morreram, mas parecem esquecidos pelo homem moderno, anestesiado pela ideia da separação entre mundo "natural" e sobrenatural - sem sentido para o mundo arcaico.O homem primitivo, dizia Eliade, estava antes interessado no princípio que no fim. Seu entendimento da escatologia judaico-cristã passava necessariamente por uma concepção cíclica na qual o fim dos tempos significaria a volta do sagrado, de uma ordem restauradora após o fim da história (ou dos tempos). Seu livro sobre o xamanismo fala justamente de alguém com poderes sobrenaturais - o xamã - "que morre para o seu lado profano para renascer santificado, superando a condição humana". Essa superação diz respeito igualmente à senhorita Christina de seu romance. A vampira precisa do pintor Ígor para resgatar a sua condição antes da queda, da maldição que pesa sobre ela pelos crimes cometidos contra os camponeses e seus excessos sexuais - ela teria, portanto, de entrar no ventre da vida primordial, passar pelo fogo, por um renascimento místico que só Ígor pode garantir.Curiosamente, Eliade, que teve como Aldous Huxley experiências com drogas (ópio, entre elas), não fala em viagens alucinantes para voltar a esse estado ancestral nem recorre ao arsenal do gênero literário que escolheu - o fantástico - para tocar no tema ressurreição. O retrato de sua Christina pelo narrador onisciente de seu romance é quase uma pintura realista que se parece com o quadro da vampira pintado, na ficção, pelo acadêmico Georges Demetrescu Mirea (1952-1934) e reimaginado pelo argentino Santiago Caruso, responsável pelas ilustrações do livro: ele é um espelho da corrupção de quem o vê, sejam os moradores do latifúndio devastado da senhora Moscu ou seus hóspedes. Para existir, retornar ao mundo dos vivos, Christina tem de cruzar a dimensão entre o real e o onírico - e só por meio do retrato ou da aparição no sonho alheio isso é possível. O vampiro, conclui Eliade, é, antes de tudo, uma impossibilidade, a sombra eterna de quem já perdeu a alma.

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