O refinamento de uma estética

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Por , BOOKFORUM , GARY INDIANA É ESCRITOR. PUBLICOU SETE , ROMANCES e SEIS LIVROS DE NÃO FICÇÃO
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GARY INDIANAThe Letters of Samuel Beckett, 1941-1956, o segundo volume de um compêndio em quatro partes, é um interminável banquete chinês no qual quase todos os gourmands mais determinados provavelmente se saciarão com iguarias, desde as crocantes orelhas de porco até os ovos de milhares de anos. Alguns poderão ficar arrepiados com as manobras radicais e as temerárias diabruras implícitas na tradução de Molloy do francês para o inglês; entretanto, muitos que tenham mais que um interesse fugaz por Beckett poderão encontrar, lá pela página 200, sua correspondência e suas notas de rodapé espantosamente detalhadas, torturando uma frase de Jane Austen - e poderão considerar-se suficientemente deliciados por uma noite, porão de lado esse alentado volume até aquele eventual e quimérico mês no campo, que reservaram para ler a obra completa de Proust.De um ponto de vista do valor de arquivo, o aparato acadêmico concedido a essas cartas é impecável, embora Beckett tivesse decidido arbitrariamente que apenas as cartas relacionadas ao seu trabalho seriam selecionadas para publicação. Em consequência disso, grande parte do material que os organizadores incluíram nessa obra - as respostas a indagações detalhistas de editores, negociações e interessantes questões de tradução - seria extremamente obscura sem uma exegese. As notas de rodapé são tão abundantes que, sem elas, as raras missivas superficiais parecem quase menosprezadas.O pior que se pode dizer da sólida pesquisa anexa é que ela quebra toda sensação de uma fluente narrativa pessoal como a que costumamos apreender da leitura das cartas de Chekhov, ou de Rosa Luxemburgo; o que "flui" em Beckett é o constante refinamento de uma estética, sua insistência numa severa e pura prática literária ascética, que se estende até a apresentação de suas peças - este volume trata principalmente de Godot, e num grau menor de Fim de Partida, cuja encenação ele indicou, obra que está impregnada pelos exaustivos conhecimentos de Beckett sobre a arte pictórica. Em Happy Days, o autor procurou condensar o espetáculo teatral em quadros cada vez mais estáticos, semelhantes a pinturas. "Não acredito na colaboração entre as artes", ele escreve, surpreendentemente, ao crítico de arte Georges Duthuit. "Quero um teatro reduzido aos seus próprios meios, linguagem e representação, sem pintura, sem música, sem enfeites."Conforme aprendemos das cartas dirigidas a vários diretores teatrais, Beckett não era absolutamente intransigente a ponto de impor sua própria visão, como foi afirmado tantas vezes. ("Você me pergunta quais são minhas ideias sobre Esperando Godot, aliás, sinto-me honrado pelo fato de o Sr. utilizar alguns trechos da peça... A respeito dessa peça não sei muito mais do que uma pessoa que consiga lê-la atentamente.") Sua preferência pessoal por Roger Blin, entre outros, permitiu uma considerável liberdade na sua encenação e direção, embora quando Beckett dirigia suas próprias peças, e às vezes, quando só dava alguma orientação a uma produção, frequentemente espinafrava os atores em suas notas. Tem-se a impressão de que, se não fosse uma pessoa terrivelmente tímida, teria preferido representar ele próprio todos os papéis, porque tinha ideias bastante complexas em relação a cada detalhe. Depois do período a que se refere esse volume, Beckett encontrou seus intérpretes ideais em Jack MacGowran, Billie Whitelaw e David Warrilow; a respeito desta, as primeiras produções de Godot foram extremamente trabalhosas, porque parecia que atores de grande renome, de Ralph Richardson a Marlon Brando, queriam contribuir com a magia que os caracterizava à austera obra-prima do dramaturgo, mas nunca fizeram isso, quer por manifesta incompreensão, quer por problemas de programação.Um toque cosmético de talento excrementício, de displicente desprezo por si próprio, e de futilidade implacável contrabalançam um abundante palavreado soporífero sobre pagamentos e negociações com os editores; Beckett muitas vezes se refere aos seus próprios escritos como merda, meleca, cocô girando num torvelinho num vaso sanitário ("Meu Deus, como odeio meu trabalho", escreveu em 1956). Ele é alérgico a todo tipo de publicidade e se recusa a conceder entrevistas, a participar de painéis, ou a condescender ao carreirismo nas conferências de escritores e festivais literários. Não podemos deixar de admirar esta extrema humildade, considerando a fátua autopromoção tão típica do mundo literário de hoje. Se a correspondência de negócios incluída neste volume é ocasionalmente redundante e cansativa, os e-mails da atual lista de endereços prometem ser bem piores!Os entusiasmos de Beckett são muitas vezes uma surpresa. Ele declara que O Apanhador no Campo de Centeio é a melhor coisa que leu nos últimos anos, e observa o "extraordinário pathos" de Barbara Stanwyck em Casei-me com Um Morto. A imagem austera de Beckett evocada por sua obra, que poderia fazer com que ele parecesse existir solitário num planeta gelado, foi se apagando com o tempo. No passado, era difícil imaginá-lo nadando, ou jogando tênis, e é ainda bastante surpreendente saber que também jogava golfe. A revelação mais importante contida nas cartas é a grande variedade e profundidade dos interesses de Beckett na música, pintura, dança; aliás, sua atividade como tradutor de obras de outros escritores (Sade, Ponge, Bataille, Genet) reflete um envolvimento com a matriz cultural ao seu redor que jamais suspeitaríamos depois de ler Watt ou Malone Morre.Menos surpreendentes são as queixas hipocondríacas da maioria dos escritores, presos a uma mesa suas entranhas se torcendo como uma das suas distrações preferidas, com as quais costumam interromper seu trabalho. Ouvimos falar longamente dos cistos recorrentes e implacáveis de Beckett, dos seus problemas dentários, dos seus episódios de bloqueio típicos dos escritores, dos períodos de depressão e de outras enfermidades. Esse tipo de informação casual permite enquadrá-lo perfeitamente no universo familiar, tristonho da sua ficção e seu teatro; é interessante notar que a obra de Beckett reflete um estado crônico de angústia física. Interessante também é o fato de que o desconforto de Beckett vivendo em sua própria pele nunca o leva na vida real àquele tipo de misantropia que seus personagens, às vezes, arrastam consigo de atoleiro em atoleiro.O inexplicável entusiasmo de Beckett pelas pinturas de Bram van Velde, articulados com grande extensão no que parece a cada três páginas, ocasiona muitas reflexões intrigantes sobre as artes plásticas em geral. Beckett aparentemente descobriu em Van Velde uma prática limitada, contida em si mesma, que ele imagina como o equivalente visual de sua prosa; o leitor pode aplicar os pontos de vista de Beckett referentes a esse artista a exemplos mais plausíveis, como Dubuffet ou Giacometti. Em todo caso, o apoio entusiasta de Beckett a um amigo consideravelmente menos fascinante reflete uma espantosa generosidade e delicadeza que todos que o conheceram observaram.Com exceção das cartas de amor difíceis de imaginar, a lacuna mais evidente aqui é a ausência de qualquer correspondência no período entre 1941 e 1945, quando Beckett e sua companheira, Suzanne Deschevaux-Dumesnil, fugindo da ocupação alemã, encontraram refúgio junto a amigos e conhecidos em várias cidades e lugarejos da França, antes de se estabelecerem em uma casinha em Roussillon, na Vaucluse - uma aldeia felizmente pouco frequentada que servia de depósito e local de reunião do pessoal da Resistência. Como Beckett era um partisan não combatente da Resistência Francesa, este foi seguramente o período mais interessante da sua vida, e é uma pena que não tenha sobrevivido dessa época nenhuma carta publicável. / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA©Bookforum, Feb/Mar, 2012. Missive Impossible, by Gary IndianaTHE LETTERS OF SAMUEL BECKETT VOLUME II: 1941-1956 Orgs.: George Craig, Martha Dow Fehsenfeld, Dan Gunn e Lois More OverbeckEditora: Cambridge University Press (886 págs., R$ 119,60 na Livraria Cultura)

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