O que nos ensina uma obra de arte?

O italiano Carlo Ginzburg lança mão de pesquisa histórica, psicanálise e investigação policial para discutir o que está por trás dos principais quadros e afrescos do artista medieval Piero della Francesca

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Por TEIXEIRA COELHO
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Quanto é possível conhecer por meio da arte? Quanto se pode conhecer sobre o passado, uma pessoa ou um povo de, digamos, 500 anos atrás? Essas são as perguntas que surgem com força tão logo se leem as primeiras páginas deste livro de Carlo Ginzburg, Investigando Piero. A segunda, é verdade, pode parecer óbvia nestes dias em que, não fosse o WikiLeaks, não se saberia muito nem sobre o presente. Mas vale a pena fazê-la, tamanha é a soberba de tantas teorias acadêmicas, sobretudo nas ciências humanas.O Piero do título é o della Francesca, de quem Ginzburg estuda um grupo que inclui o Batismo de Cristo (da National Gallery, Londres), a Flagelação de Cristo (da Galleria Nazionale delle Marche, Urbino) e o ciclo de afrescos da Igreja de São Francisco em Arezzo. O problema do autor é quando essas obras foram pintadas e onde. E quem ali se vê. Ginzburg contesta hipóteses anteriores, em especial as de Roberto Longhi, e lança-se numa investigação que deixa de lado as questões formais, estilísticas, para ater-se às iconográficas e àquelas relativas ao comissionamento das obras, a quem pagou por elas.Algumas poucas dezenas de páginas dentro do volume fica claro quão pouco se pode de fato conhecer através da arte, ao contrário do que repetimos sobre ela como instrumento do conhecimento na tentativa de convencer o mercado e o Estado a nela investir. Ginzburg contesta terceiros e terceiros o contestam, o que ele não oculta do leitor. Seu estudo provocou discussão na Itália e fora dela, pela resposta que sugere e por seu método, o da micro-história.Um método ainda algo polêmico. Ginzburg, como outros micro-historiadores, quis evitar as armadilhas do anacronismo (recorrer a conceitos de uma época para entender outra), o que exige a hipótese de partida de que o passado é largamente impermeável ao presente, tornando pessoas do século 15 ocidental tão distantes das de hoje desta mesma cultura quanto alguns povos primeiros, no jargão atual, de alguma ilha perdida do Oriente (se isso ainda existe). E, para evitá-las, o historiador tem de manter-se longe das ideias feitas de agora, das palavras de ordem ideológicas e das disputas acadêmicas do presente (que no campo das ciências humanas duram mais do que o cientificamente aceitável...) Isso fez com que Ginzburg fosse chamado "de direita", um absurdo dada sua história e a de sua família.Uma pista sobre seu método vem logo à tona se o leitor não reprimir sua primeira sensação: a de estar lendo uma história "de detetive". Será que fulano conhecia beltrano? Quando, de onde? Quem realmente pagou por tal pintura? E quem mesmo fez esta parte do quadro? A sensação de estar lendo uma história policial me trouxe à memória o que Ginzburg já disse sobre seu procedimento, armado sobre três campos: a história da arte, a psicanálise (não no sentido de mergulho no inconsciente, mas de ver e entender pequenas coisas ocultas, embora visíveis) e... a investigação policial. O título do livro revela nesse momento todo seu pleno e literal significado.Essa combinação pouco usual leva Ginzburg a ver nas obras em análise uma mesma pessoa por meio, simplificando, do estudo de um padrão nasal. Foi "abrindo caminho nessa floresta de narizes pintados" que o autor chegou a suas conclusões sobre quem é representado, quando e onde. Ginzburg antecipa no próprio livro uma crítica que lhe poderia ser feita e que já foi feita: ele reconhece que a "reconstrução hipotética" desses narizes "pode parecer ociosa, quando não trivial" e, ao admiti-lo, está pensando na crítica, repetida alguma vez, de que uma história de trivialidades é, no fundo, uma história trivial.Há alguma tentação de dizer isso, dependendo do tipo de leitor. As duas perguntas iniciais do historiador Ginzburg não são aquelas que motivam, nessa ordem, outros interessados, como o crítico da arte ou aquele que vê arte "apenas" em busca de uma ampliação de horizontes, num processo que independe de saber quem mesmo está representado numa tela e que quer saber, antes, o quê propõe uma pintura e como o faz para só então, muitas vezes ao final das indagações, perguntar-se quando mesmo e onde foi feita e quem mesmo foi o modelo.Seu método não se interessa tanto pelos valores intrínsecos da arte como por seus valores e vetores extrínsecos. Parece mais central à arte de Piero e ao conhecimento de mundo que ela permite entender a perspectiva - talvez a personagem central de sua pintura (mais do que as pessoas retratadas) - ou reconhecer seu protocubismo num afresco do que saber quem mandou fazer tal obra e pagou por ela. O fato, porém, é que os valores extrínsecos à arte estão hoje de retorno em mais de um campo, podendo ser vistos por aqui na vinculação da importância de uma arte (e da possibilidade de financiá-la com fundos públicos ou privados) à sua capacidade de promover o desenvolvimento ou a integração social e tanta outra coisa e não àquilo que lhe é próprio e inerente: sua estética, que define sua ética mais que tudo.Mas Ginzburg previu também esse argumento e de início menciona Aby Warburg e seus ensaios que "atestam uma amplitude de visão e uma riqueza de instrumentos analíticos" para ressaltar que foi essa atenção ao contexto social e cultural amplo que permitiu a Warburg (como a Ginzburg) pôr-se "a salvo dos excessos interpretativos". O seu é portanto um outro caminho, a integrar aqueles mais "formais" num complexo que não torna nada fácil e evidente a resposta à pergunta inicial sobre o que de fato se pode conhecer sobre a vida e o mundo por meio da arte.Mesmo sendo um "policial", este não é um livro de leitura rápida: o tema é duro e tratado com rigor acadêmico, é preciso envolver-se, estar disposto a lê-lo. Como habitual na Cosac Naify, é um belo volume ilustrado que só um programa empenhado pode gerar. O livro, porém, dá mais a pensar que a ver - como se propõe.TEIXEIRA COELHO É CURADOR DO MASP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE O HOMEM QUE VIVE (ILUMINURAS)

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