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O que era?

Em que inseto Kafka tinha, afinal, transformado Gregor Samsa: barata ou besouro?

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Por Luis Fernando Verissimo
Atualização:

Vladimir Nabokov, além de escritor, era um lepidopterologista. Como romancista e crítico, gostava de captar espécimes de escrita e alfinetá-las como borboletas num estojo. Ninguém melhor do que ele para opinar sobre uma antiga controvérsia literária: em que tipo de inseto Kafka tinha, afinal, transformado Gregor Samsa, em A Metamorfose. Na história do Kafka, um dia Gregor Samsa acorda de um sono inquietante e se vê transformado num monstruoso... o que, exatamente?

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Convencionou-se que o desafortunado Gregor acordou transformado numa grande barata. Nabokov concluiu que o inseto era um grande besouro, e estranhou que Kafka ignorasse que os besouros têm asas. Se o inseto do Kafka pudesse sair voando, a história teria outro sentido. Ou mais um sentido, além de todas as outras interpretações dadas à obscura alegoria. Nabokov dedica a sua conjetura sobre as asas (está na coleção de palestras sobre literatura que publicou depois de ficar famoso com Lolita) a todas as pessoas que têm asas mas não sabem. Entre as muitas interpretações de A Metamorfose a que Nabokov rejeita com mais desdém é a freudiana, segundo a qual a origem da história é a relação difícil do Kafka com seu pai, e seu sentimento de culpa. Freud era uma das principais antipatias de Nabokov. E elas não eram poucas.

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Metamorfoses atrás de interpretações, freudianas ou não, existem desde antes de Ovídio, na mitologia e na literatura. Num livro sobre o tema – chamado Fantastic Metamorphoses, Other Worlds, não sei se foi traduzido – Marina Warner descreve, por exemplo, a transformação sofrida pela palavra e o conceito de “zumbi” através dos anos. Segundo Warner, “Zombie” apareceu em inglês pela primeira vez numa História do Brasil em três volumes escrita por Robert Southey e publicada na Inglaterra entre 1810 e 1819. Southey relata a revolta de escravos e índios contra os colonizadores, liderados por “Zombi”, que identificam com um Deus angolano, e que acaba barbaramente sacrificado no fim da revolta. Depois da derrota do “Zombi” descrito por Southey, que inspirou protestos e poemas na Europa, ganhou corpo a versão oficial de que “Zumbi” era o nome do Diabo na língua dos africanos, o primeiro passo para transformar o mártir não em herói venerável, mas em assombração. De líder libertário de pessoas que preferiram morrer a ser escravos, o nome foi lentamente se metamorfoseando até significar um corpo vazio, sem emoção ou discernimento, a carcaça do que fora um dia. O zumbi de agora é o zumbi de então, vencido e eviscerado.

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Na sua palestra sobre A Metamorfose do Kafka, Nabokov não propõe nenhuma interpretação, pelo menos nenhuma com uma inegável marca pessoal. Nota certas reincidências no texto – como o número três (as três portas do quarto de Gregor, os três membros da família mais três empregados, os três hóspedes com suas barbas) – mas recomenda que não se dê muita importância à coincidência, que é mais técnica do que simbólica. A fantasia de Kafka tinha sua lógica, e o que pode ser mais lógico do que o velho trio, tese, antítese e síntese? Acima de tudo se deveria evitar qualquer mito proposto por seguidores do “feiticeiro de Viena”, que era como Nabokov chamava Freud.

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Para Nabokov, interpretações além da realidade do texto eram desnecessárias. Afinal, nós todos já tivemos a sensação de acordar, estranhamente, como Gregor Samsa. “Acordar como um inseto não é muito diferente do que acordar como Napoleão ou George Washington”, diz Nabokov. E conta: “Conheci um homem que acordou como o imperador do Brasil”. 

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