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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O que ela faz?

A vaidade de ser atualizada começava a ruir em Maria Amélia. Não binárias?

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Atualização:

A senhora octogenária se orgulhava de acompanhar o mundo dito moderno. Não era saudosista ou melancólica por definição. Seguia o simpático trio de veteranas “antenadas” nas redes: “avós da Razão”. Pertencia ao seu século, mesmo tendo acompanhado com vitalidade tudo o que ocorreu na segunda metade do anterior.  O orgulho de contemporaneidade de Maria Amélia sofria alguns abalos. No almoço familiar, sentou-se ao lado do neto que se fazia acompanhar da namorada. Queria deixá-los à vontade e falou como tinha usado “lança-perfume” nos carnavais de 1950. “Não era proibido”, dizia, oscilando entre o ato transgressor e a força da norma. Os jovens se entreolharam: nunca tinham usado lança-perfume. 

A bandeira que representa os não binários virou símbolo de luta contra o preconceito Foto: pixabay

Para a conversa não morrer, a ativa senhora perguntou o que Taís fazia. A jovem namorada afirmou que era “influencer”. Maria Amélia sorriu: sabia que existia tal função e que era rentável em muitos casos. Elogiou a menina de 19 anos e citou ao neto o nome de algumas influencers de sucesso. A menina fez uma leve careta: “Não, não sou destas que vendem creme e postam fotos de cachorros para fazer propaganda de ração. Eu quero batalhar pelas pessoas não binárias”.  A vaidade de ser atualizada começava a ruir em Maria Amélia. Não binárias? Seria uma luta pelo tratamento de bipolaridade? Um manifesto contra a dualidade política insuportável? Arriscou no campo político: “Você critica o debate Lula versus Bolsonaro e aposta em uma terceira via?”. Taís até se assustou com a pergunta. Dotada de certo sentido de missão, ela explicou para a avó do namorado que o termo “não binário” era associado a pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limitava às categorias “masculino” ou “feminino”. Muita gente sentia, ela disse, o gênero em algum lugar entre homem e mulher. As pessoas do grupo eram, no fundo, não conformistas e desejavam, simplesmente, escapar de classificações tradicionais. 

Era muito para a cabeça esforçada de atualidades da avó. Ela convivera com héteros e homossexuais. Tinha uma amiga já falecida que, após a viuvez com um médico, tinha encontrado alento com um amor por outra mulher. Tinha sabedoria suficiente para perceber que a sexualidade humana ia bem além das gavetas tradicionais nas quais fora educada. Taís seguiu explicando muitas coisas. Paciente, a velha senhora disse que eram novos tempos. Naquele domingo, aos 84 anos, ela soube que era uma pessoa cis. Sabia da Cisplatina e da Cisjordânia, porém nunca se tinha percebido como cisgênero. Como o burguês fidalgo de Molière que aprende e usa um novo conhecimento, sentou-se à mesa de almoço e, com naturalidade meio enfastiada, disse ao filho e à nora: “Vocês dois são tão cis...”. A esperança deveria ser transumana? 

Opinião por Leandro Karnal
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