O professor no porão

Não me lembro quanto pagávamos por aula, mas não era muito. A gente deixava o dinheiro numa cestinha de vime, como se as cédulas fossem um óbolo

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Por Milton Hatoum
Atualização:

A última vez que o vimos foi numa aula no porão, ali perto do Igarapé de Manaus. A gente descia por uma escadinha estreita e curvava o corpo para entrar no subsolo. Uma voz dizia: “Cuidado com a viga”, e a gente sempre se lembrava da cabeçada de Charles Stone na viga de concreto, que parecia gotejar havia décadas.

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O que mais sufocava lá dentro não era o calor úmido nem o ambiente sombrio, iluminado pela fraca luminosidade que vinha do óculo com fios de ferro, cujo desenho parecia uma teia de aranha; era uma luz menos forte que a da lâmpada empoeirada e nua que pendia do teto e clareava a mesa. O mais sufocante era ver o professor no subsolo. O recinto opressivo era a moradia dele.

Éramos três estudantes. Charles Stone costumava escarnecer de tudo e de todos, mas ali dentro adquiria uma expressão grave e não ousava fazer piada. Joquinha Araus era o próprio deboche ambulante, mas quando imergia no subsolo também recolhia a língua viperina. O vulto do professor, sentado e cercado de livros, e a cabeça enevoada pelas tragadas de um tabaco fedorento impunham um tipo de respeito quase sagrado. O mais impressionante eram as pilhas de livros que cercavam tudo: a cama, a privada sem tampa, um fogãozinho de duas bocas, a mesa e a haste de ferro de um ventilador do tamanho de um motor de avião.

Não me lembro quanto pagávamos por aula, mas não era muito. A gente deixava o dinheiro numa cestinha de vime, como se as cédulas fossem um óbolo. E então líamos em voz alta trechos da última parte d’Os Sertões, e depois da leitura o professor falava da Primeira República, da Igreja Católica, da formação da comunidade de Canudos, dos latifúndios dos coronéis do Nordeste.

Ele destacava trechos do livro e os comentava. Por exemplo: a frase “Era jagunço contra jagunço” era uma alusão aos negros, cafuzos e outros mestiços pobres do Exército que matavam negros, cafuzos e outros mestiços pobres que resistiam com armas rudimentares.

Falava das derrotas vergonhosas de várias expedições do Exército, cujos soldados em fuga deixavam canhões e outras modernas armas europeias. Falava do messianismo naquela região sertaneja, e esse assunto fascinava Charles Stone, bisneto de norte-americanos que, em 1865, haviam migrado para Santarém depois da Guerra de Secessão. O professor pedia que a gente relesse certas páginas, e dizia que o esforço de Euclides para entender o Brasil era enorme, absurdamente enorme, e esse empenho, que incluía uma paixão pelo País, era tão comovente quanto a linguagem e o estilo euclidiano.

“Não é uma ficção, nem deve ser lido como um romance”, ele dizia. “Mas o professor de geografia do Ginásio Amazonense acertou em castigar a sala toda com a leitura e o fichamento desse livro fundamental. Sem esse castigo, vocês provavelmente não iam ler Os Sertões. É um livro denso, belo e meio torto sobre a nossa desgraça, o nosso impasse. Brasileiros pobres massacrando conterrâneos paupérrimos, enquanto os coronéis poderosos pisam em todos. Foi um vexame para o nosso Exército, que deu o golpe para fundar a República e nunca parou de se intrometer na política.”

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Ele criticava as teorias raciais e o determinismo climático d’Os Sertões: “Falhas graves que geram preconceito e racismo”. E acrescentava que essas teorias vinham de leituras do século 19, que exerceram uma influência decisiva na formação do escritor. Foram três meses de leitura e de perguntas sobre a história do livro e a História, e até hoje guardo a edição de 1967. De vez em quando releio passagens escolhidas pelo professor, frases que falavam do Brasil: “A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a Guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se”.

O mal era muito maior. E a civilização é a face oculta da barbárie. Então, num dia de novembro daquele ano, uma corrente de aço com cadeado trancava o portão da entrada. O dono, que alugava o subsolo, não sabia o destino do inquilino. Joquinha Araus nos olhou: será que ele está mentindo? Charles Stone, com voz de cachorrão brabo, fez perguntas ao senhorio, esperou em vão alguma resposta, e chutou as barras de ferro do portão. O homem recuou, amedrontado. Enfim disse, num gaguejo covarde, que o ex-inquilino era comunista.

Ficamos por ali, pensativos e tristes, os três agachados na calçada, com o rosto no óculo, vendo o porão sombrio, quase vazio, sem as pilhas de livros.

A lâmpada, apagada, pendia sobre a mesa nua. 

É ESCRITOR E ARQUITETO, AUTOR DE ‘DOIS IRMÃOS’ E ‘CINZAS DO NORTE’

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