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O primeiro round

Lamentei aqui, na semana passada, não ter podido ler uma carta que Décio Pignatari enviou de Paris a Paulo Mendes Campos, e que, seis décadas depois, mortos o remetente e o destinatário, julguei estar para sempre perdida. Tudo o que dela consegui recolher foram estilhaços que Paulo acomodou, sob o título “Bilhete”, na coluna Conversa Literária, que assinava na revista semanal Manchete. Mal e mal, pude assim reconstituir o que foi uma escaramuça verbal protagonizada por dois poetas cujas liras, antes, durante e depois, jamais se afinaram.

Por Humberto Werneck
Atualização:

Duas surpresas me aguardavam, tão logo publiquei a crônica “Sopapos literários”. Do Rio, onde comanda o setor de literatura do Instituto Moreira Salles, minha amiga Elvia Bezerra, escritora e pesquisadora implacável, me fez ver que eu empurrara para fevereiro de 1957 um episódio na verdade acontecido dois anos antes. Culpa, constatei, de uma data desastradamente anotada por alguém, à mão, na cópia do “Bilhete” de Paulo Mendes Campos que tenho em meus arquivos. Fazia diferença. Quando trocaram cutiladas, os dois poetas eram ainda mais jovens do que eu pensara, Paulo com 32 anos, Décio com 27. E, embora os criadores da poesia concreta, entre eles Décio, já se fizessem notar pelo menos desde 1952, quando lançaram a revista Noigandres, só a partir de 1956 o movimento viria a se estabelecer formalmente, com todo o som e fúria que lhe são peculiares. 

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A segunda surpresa me chegou via Dante Pignatari, filho do poeta, portador da notícia de que a carta de Décio, datada de 24 de novembro de 1954, não só sobreviveu como uma cópia se encontra no Centro Cultural São Paulo, onde, sob o comando da curadora Maria Adelaide Pontes, uma exposição dedicada aos arquivos de Pignatari pode ser visitada até 25 de outubro. Minutos depois, reproduções das três páginas do documento datilografado pingavam no meu computador, permitindo-me, salvo nova surpresa, fechar aquela história de pugilato verbal.

Recém-formado em direito, Décio Pignatari foi passar dois anos em Paris, e lá estava quando lhe caiu nas mãos um exemplar da Manchete em que Paulo Mendes Campos, na sua Conversa Literária, respondia carta de uma “prezada leitora paulistana” em busca de orientação para leituras. A resposta do colunista, em tom didático-paternal, talvez fosse aquilo de que Décio Pignatari precisava para, na pessoa de Paulo Mendes Campos, esbordoar o establishment literário brasileiro de então. E o fez sem um pingo de cerimônia, esparramando-se num texto de 1.800 palavras que mereceria, do contendor, um troco com 860 nas páginas da revista.

De saída, Décio investe contra o que considera “a perdição intelectual” de Paulo, acusando-o de aproveitar-se da “ignorância do povo brasileiro” e de “ir em frente com esse lirismo piegas, molhado de mentalidade de funcionário público”. Mais adiante, mobiliza seu arsenal de invectivas para acusá-lo também de endossar uma “poética de casa & jardim” que “serve apenas para entupir, engordar de grossura esse povo infeliz, com a grossa e opaca baixela da casa, para que ele não consiga atravessar o muro do som (oco) da ignorância”. 

Depois de ensinar a Paulo Mendes Campos, em letras graúdas, que “arte é FORMA”, e que “há tanto prazer e aventura em penetrar num belo livro difícil como numa bela mulher”, Décio Pignatari lhe recomenda que “leia e mande o povo ler o ABC of Reading de Ezra Pound”. Tendo a esta altura da carta já citado Pound e James Joyce, recorre também à voz de Orlando Silva, quando ele, na valsa Caprichos do Destino, canta que “é doloroso, mas infelizmente é verdade”, antes de concluir que a coluna de Paulo na revista “é uma confusão em disponibilidade” onde “tem de tudo para todos, como a Sears Roebuck”, menos livros. No percurso, sobram estocadas colaterais para Rubem Braga e Guilherme de Almeida, este na condição de tradutor do então em voga Eu e Você, do francês Paul Géraldy.

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Décio Pignatari concita Paulo Mendes Campos a corrigir o rumo de sua página na Manchete, de modo a que o leitor, estimulado a abeberar-se na obra dos “grandes”, como Mallarmé, Joyce e Pound, que aprenderá a ler nos idiomas originais, possa começar “a compreender o que se deve fazer no Brasil em matéria de literatura”. A Décio não lhe parece missão impossível, pois crê que o colunista “está munido das melhores ‘boas intenções’”, ainda que assim, com aspas, além de dispor de “outros recursos igualmente bons”. Quais? Não se fica sabendo. O missivista espera, em todo caso, que o remetente esteja munido também de “fair play cultural” ao ponto de aceitar o abraço com que fecha a carta. 

O entrevero prometia mais, porém morreu com a resposta de Paulo Mendes Campos em sua coluna. Ou será teve um novo round, e eu, uma vez mais, é que não estou sabendo?

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