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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|O precisar do precisando

Corrupção nada mais é do que o conflito entre as obrigações universais dos papéis públicos e as expectativas dos laços particulares

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Atualização:

O Brasil precisa de precisar precisando. Precisando cada vez mais porque, sem o precisando preciso e precioso, não se pode continuar precisando tanto do precisar que conforma uma nação cujo centro é o precisar precisando.

'Corrupção nada mais é do que o conflito entre as obrigações universais dos papéis públicos e as expectativas dos laços particulares' Foto: Joedson Alves/EFE

As “elite” malandras, molecas, aristocráticas, stalinistas-milionárias, paranoico-legalistas e negacionistas que tanto precisam deveriam substituir o paradoxal e comteano “Ordem e Progresso” por um mais sincero “É preciso precisar”. E é precisando do precisar que vamos continuar a fazer história, pois o que é a história senão um precisar do precisando que tanto precisamos?  * De onde vem esse viés senão de um sistema relacional no qual uma das questões fatais é “o que você quer?”. Essa pergunta amiga, inocente e, ao mesmo tempo, sugestiva de dívidas e dúvidas – de favores, obséquios, lembrancinhas e empenhos – é adequada à sociedade hierarquizada que nos obriga a saber quem somos.  * Uma ponte pênsil entre afinada gradação fidalga e chocante igualdade cidadã veio com o republicanismo forçado a reprimir séculos de escravidão africana e fidalguia branca e mestiça. Uma mestiçagem que não cabia na homogeneidade do arianismo europeu que os subsociólogos nacionais levaram mais a sério do que os seus mestres estrangeiros. Antigamente o Brasil estava condenado porque era misturado. Hoje, com Obama e o “black lives matter”, surgem dúvidas. Você prefere segregação e violência ou mistura?  * Do que você precisa? A pergunta-oferenda é esperada quando um amigo “vira” ministro ou um pai é eleito presidente. Ela revela como as oposições políticas se curvam diante das normas pouco estudadas do filhotismo, cujas afeições como recurso de poder têm muita potência. Os subsociólogos brasileiros nunca entenderam o peso desses costumes tão bem aquilatados por um “reacionário” Gilberto Freyre. Quando os laços de afeto não são levados a sério, eles despontam como vergonhas fascistoides quando – por erros processuais, numa clara ficção legal – se anulam crimes de inegável responsabilidade política, num supremo carnaval jurídico. O legalismo furiosamente praticado é a lepra do nosso sistema de poder porque, como o coronavírus, ele é de direita e também de esquerda...  Seria preciso acabar com a fraternidade no Brasil? Tal argumento é tão absurdo quanto não levar a sério as exigências democráticas dos cargos públicos que requerem a separação entre o pessoal e o impessoal; ambos com suas demandas. Num livro capital, Max Weber distinguiu no protestantismo um viés individualista no qual o crente fala diretamente com Deus. Esse Deus sem uma santa igreja, sacerdócio, confissão e o purgatório como recurso, indulgência e prescrição. Não foi o caso do Brasil onde temos um protestantismo fetichista. * Corrupção nada mais é do que o conflito entre as obrigações universais dos papéis públicos e as expectativas dos laços particulares (familiares ou ideológico-partidários). Não é por acaso que a justiça seja a primeira esfera a ser agredida quando ela impede a proteção dos filhos ou dos companheiros.  * No Brasil, os presidentes não inauguram. Eles tomam posse para messianicamente acabar com a inflação, com a roubalheira ou com a incompetência como se todo mal só estivesse no governo, e a sociedade fosse inocente e governada por alienígenas.  Tal concepção divide governantes e cidadãos criando estadomania e estadolatria – esses criadores permanentes de estadopatia. O resultado é que elegemos, com perdão do trocadilho, presidentes-messias que iriam tudo mudar, mas que (com uma ou duas vênias) repetem em escala escabrosa o que condenavam. A ausência de debate sobre o significado do papel público num sistema estruturalmente relacional desmoraliza o projeto democrático.  * O poder à brasileira é mais inspirado por ordenações (eu não sou o Estado, dizia o rei luso muito antes do francês, mas, com meus juízes, eu ordeno a vida do meu povo...) do que por constituições. Nessa receita, o Estado seria o ordenador da sociedade vista como mestiça, libidinosa e inflada de coronéis e capitalistas opressores. Enquanto isso, somos sistematicamente roubados por administradores públicos de todos os quilates em todos os níveis.  * O delito foi politizado e, neste devido momento, eu sei apenas o que escrevi na minha obra e aqui reitero: no Brasil, o crime não depende da lei, mas de quem o cometeu! Um axioma perfeito para a sociedade do “quem foi rei sempre é majestade”. Um princípio que torna difícil punir responsáveis por roubalheiras públicas realizadas em nome do povo.  * Somos avessos ao igualitarismo. Se o viés pessoal é o modelo do precisar precisando, o igualitarismo impessoal republicano não é progresso, é retrocesso. Como a lei pode valer para todos se branco e doutor sou, tenho foro privilegiado, fui presidente e papai é o dono do país?  PS: Leio que o Museu Nacional pode virar um ponto de turismo. Nada mais me espanta no Brasil. Se apagamos a história e anulamos crimes, por que não completar abolindo a República e proclamando revolucionariamente a Monarquia? Seria mais uma nobre narrativa... É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

Opinião por Roberto DaMatta
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