02 de outubro de 2010 | 00h00
O espanhol Javier Marías, desde sua obra-prima Coração Tão Branco, é considerado um dos principais autores europeus. Ele é um estranho caso de sucesso de público e crítica: seus livros carecem de trama, e seus narradores desconhecem caminhos simples - tergiversam em redor de suas questões por páginas e páginas. Ainda assim, seus livros são lidos compulsivamente. O motivo: apesar de atmosféricos, de carecerem de qualquer interesse pela facilidade da trama, seus narradores se debruçam sobre a atividade mais comum de qualquer ser humano: a fofoca. Dedicam-se a decifrar os mistérios e segredos da vida alheia, e especulam de forma interminável sobre o que está escondido sob as aparências.
A única diferença é que são sofisticados e letrados, mas isso não faz deles menos fofoqueiros. Os narradores de Marías especulam, especulam de novo, especulam mais uma vez - e constroem dezenas de possibilidades sobre o próximo, com interminável prazer. Quem não dedica ao menos uma hora do seu dia a essa saudável atividade?
A outra chave do sucesso de Marías é que ele, tal como Jorge Luis Borges, constrói suas narrativas alheio à forma como as pessoas realmente vivem. Assim como o argentino espelhou suas histórias em enciclopédias, dicionários e livros de divulgação de filosofia, botânica e aritmética, Marías organiza seus enredos tendo no horizonte ficcional filmes policiais, thrillers e todo um repertório de relatos da mais pura espionagem. Marías destilou centenas de páginas na imprensa espanhola ao seu amor ao cinema - e o leitor atravessa um romance de Marías contagiado por esse imaginário, essa atmosfera. Seu Rosto Amanhã é uma homenagem ao universo da espionagem como os livros e o cinema o retrataram.
A trama até o início do terceiro volume é simples: angustiado pelo fim de seu casamento, Deza decide visitar o campus universitário de Oxford onde, em um período retratado por um romance anterior de Marías, Todas as Almas, lecionara por um ano. Com idas e vindas, a linha central do romance, a que o narrador sempre retorna, transcorre em algumas horas após um jantar que um amigo de tempos de faculdade, um professor universitário aposentado, lhe dedica. Ali conhece o membro do MI6 que o contrata; ali descobre a verdadeira história do passado de seu melhor amigo; ali soluciona o mistério de uma nódoa de sangue no soalho; ali, castigado pela insônia e curiosidade, reflete sobre a vida com sua ex-esposa. No entanto, a narrativa avança e retrocede, indo aos fatos anteriores a essa madrugada e também se debruçando sobre sua posterior experiência no MI6. Que essa estrutura funcione parece milagre, mas é pura maestria: em momento algum o leitor está confuso, e esse manancial de tempos possui uma admirável fluidez.
No terceiro volume, Veneno, Sombra e Adeus, Deza tem que lidar com o impasse de passar de mero observador da violência e decifrador de discursos alheios para provocador desses discursos e agressor. Para além de toda a ladainha sobre a natureza do Mal, que é uma forma de levar o romance para um caminho pseudofilosófico que subtrai sua fluidez terrestre, Marías explora o peso da tranquilidade. O conhecimento é veneno e sombra - e, uma vez envenenado, como retomar a vida anterior? Deza quer voltar à Espanha, retomar a vida que tinha com sua esposa, mas agora é um expurgo: cúmplice de atos violentos, seu último ato será construir uma máscara com a qual poderá viver.
VINICIUS JATOBÁ É CRÍTICO LITERÁRIO
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