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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O peso

Não sou sábio. Eu me canso e, às vezes, deixo que a exaustão me torne desatento ao pedido de atenção

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Atualização:

Somos ingratos, destacamos o mal, estamos imersos no ressentimento e aceitamos as piores versões negativas de tudo. “Nossa, Leandro? Acordou mal?” É justo que a dúvida surja, dileta leitora e atento leitor. Verei se consigo explicar a ideia inicial.

Imagine um casamento feliz de dez anos. Após uma década de jubiloso consórcio, um cônjuge trai o outro. Foi algo impactante. Ocorre a separação dolorosa e irritada. Pela sua experiência, qual narrativa será proferida sobre o casamento ao encontrar a pessoa que foi atingida pela notícia da traição? A felicidade de 120 meses ou o ato de uma hora? Pela minha experiência com amigos e amigas, só existirá um evento a ser narrado e este sufocará as viagens, os jantares e o amor anterior. 

Eu assinava milhares de livros em um lançamento na era pré-pandêmica Foto: Tyrone Siu/ Reuters

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Eu assinava milhares de livros em um lançamento na era pré-pandêmica. Ali, sentado, por até sete horas seguidas, sorria a todo mundo e colocava algo por escrito fazendo a indefectível foto. Sem banheiro, sem pausa, sem reclamar: fazia o meu trabalho, retribuindo a devoção afetiva de tanta gente. Uma vez, após milhares de autógrafos e sorrisos, desci ao carro no subsolo da livraria do Conjunto Nacional. Estava exausto e... feliz. Missão cumprida! A mão e as costas doendo em paralelo a uma intensa vontade de ir para casa. 

Ao lado do meu carro, sorridente, uma fã esperava querendo um vídeo pessoal e longo para a família. Perguntei, desolado: “Agora?” Ela saiu muito irritada. Mandou mensagem dura em redes sociais. Sim, uma pessoa sábia e tranquila ficaria sorridente não apenas nas sete horas anteriores, todavia na oitava hora igualmente. 

Não sou sábio. Eu canso e, por vezes, deixo que a exaustão me torne pouco atento ao bilionésimo pedido de atenção. O que restou para a fã injuriada? Leandro é grosso, apesar de eu ter sido amável para milhares de pessoas. O que restou na minha memória? Nada no mundo vale a pena... Os dois, ela e eu, justificamos as minhas ideias do início do texto. 

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Minha questão: por que damos tanta atenção ao peso do mal, do erro, da falha ou da secura momentânea? Por que Hobbes triunfa sobre Rousseau sempre? A natureza perversa é uma certeza sobre o bom selvagem? 

Semeais lindas flores, caros e caras. Advirto-os: se houver uma erva daninha acrescentada ao conjunto, ela imporá suas folhas indesejadas sobre todas as flores raras e delicadas. A esperança do jardineiro é a generosidade do público que aspira suas flores. 

Opinião por Leandro Karnal
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