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O paradoxo da transgressão domesticada

Voz singular anunciada na estreia de Juliana Frank transforma-se em conteúdo previsível em novo título

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualização:

Em 2011, Juliana Frank publicou Quenga de Plástico, livro instigante composto por capítulos curtos como posts de um blog imaginário, ou pelo menos podiam assim ser lidos. Nas palavras da narradora, a ex-atriz pornô Leysla Kedman: “Escrever crônicas é escrever sobre temas atuais. E por acaso existe algum tema mais atual do que EU? (...) Também fiz um blog porque sei o quanto sou interessante”. Dupla paródia.

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De um lado, a prosa afiada alvejava a onda narciso-exibicionista do modelo do blog. De outro, satirizava as garotas de programa convertidas em celebridades por expor sua “privacidade” para um público cujo voyeurismo tornou-se autêntica respiração artificial.

Por isso, Quenga de Plástico anunciou uma voz singular. Meu Coração de Pedra-Pomes, contudo, pouco acrescenta ao livro anterior. Seu pretenso prefácio, “Exijo uma explicação!”, explicita o problema maior da autora: a autoindulgência com jogos de palavras pouco surpreendentes. Além disso, ela aposta em noção paradoxalmente domesticada de transgressão.

Leia-se um dos achados de “Exijo uma explicação!”:“– Inveja do falo!– Estima do falo!– A literatura acabou! (Silêncio da autora)”

À dicção surreal-vanguardista corresponde o afã de transgressão a todo custo, embora reduzida a conteúdo previsível. O anacronismo da opção revela o limite do projeto: como escrever numa linguagem padrão, sem força inventiva, e pretender uma literatura transgressora? Será que se pode postular algum conteúdo tão transgressor que dispense o trabalho rigoroso com a linguagem? O título do livro é didaticamente explicado: “me tranco no quarto para fazer macumbas com toda a força do meu verdadeiro coração de pedra-pomes que pensa que pensa”.

A personagem-narradora de Meu Coração de Pedra-Pomes, Lawanda, é faxineira de um hospital e oferece todo tipo de serviço alternativo aos pacientes cujos desejos coincidem com o seu propósito de romper tabus.

Vejamos os casos mais “escusos” de Lawanda. Há um velho paciente que ambiciona fugir por uma noite. Porém, morre na véspera. A narradora encara o óbito filosoficamente: “Achei mesmo bom não ter ido com o velho traquinas ao show de Cauby. Seria a experiência mais monótona da minha malfadada existência”.

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Outra paciente é mais ousada. Encontra-se internada para tratar de “famigerado herpes genital” e contrata Lawanda para obter um encontro com seu namorado: “Chegamos ao andar em que a infectada espera pelo falo abrasador de seu amante. Vai lá, come ela e bota esforço”.

Pois é.

Os impasses do livro esclarecem o anacronismo de um conceito ingênuo de transgressão numa época em que nada mais parece capaz de chocar.

Eis, então, o eterno retorno da diferença que realmente conta: em literatura, e pouco importa a época, a transgressão mais radical é sempre a invenção com a linguagem.

JOÃO CÉZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ, AUTOR DE MACHADO DE ASSIS: POR UMA POÉTICA DA EMULAÇÃO.

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