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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O pacto do diabo

Permita-se divagar sem fios sólidos com o real, querida leitora e estimado leitor

Atualização:

Permita-se divagar sem fios sólidos com o real, querida leitora e estimado leitor. O outono é tempo de devaneios. Suponha que você visse ser firmada uma aliança entre Jair Bolsonaro e Guilherme Boulos. Os dois apareceriam em público elogiando um ao outro. Fariam brindes pela saúde do novo amigo. Os aliados de cada um estariam proibidos de fazer críticas ao outro grupo. Incrível? Inverossímil? Delirante? Sim, mas você teria conseguido chegar mais perto do sentimento do mundo quando viu o anúncio do Pacto Germano-Soviético, em 1939. Stálin era o arquirrival do nazismo. Hitler vociferava uma retórica antibolchevique. De repente! A aliança dos dois celebrada em brindes. Bolsonaro não é Hitler e Boulos não é Stalin, porém, eu queria estimular a pensar uma aliança surpreendente.

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O ditador soviético sentia que as potências ocidentais lançavam o lobo nazista para o Leste. O Império Britânico e a República Francesa acabaram aceitando (a contragosto) a anexação da Áustria e concordaram abertamente com a incorporação dos Sudetos da Checoslováquia. No meio do caminho, existia a Polônia, alvo da ambição geopolítica de Moscou e de Berlim. 

Os agentes da surpresa eram o chanceler alemão, Ribbentrop, mentiroso contumaz que acrescentara um von ao nome para tentar dar alguma dignidade à família. Do outro lado, o ministro soviético das Relações Exteriores, que também havia assumido um nome estranho ao que recebera no batizado: adotara a alcunha Molotov (martelo, em russo) no lugar do Skriabin. O termo ainda viria a batizar o artefato básico da guerrilha urbana: as garrafas incendiárias conhecidas como coquetéis molotov. 

As ideologias eram opostas, os interesses, similares: duas ditaduras absolutas que usavam de propaganda e de terror. Alemães queriam evitar o pesadelo de duas frentes e retalhar a Polônia. Os russos também queriam que parte da Polônia voltasse à realidade do controle czarista do século 19 e ainda olhavam com ambições para as Repúblicas do Báltico e da Finlândia. Hitler estaria livre para tomar parte do território polonês e ainda atacar britânicos e franceses. Stalin reconstruiria parte da frente ocidental que a derrota para os alemães na Grande Guerra tinha desfeito. Exemplo de política realista, Realpolitik, passaram ambos por cima de suas diferenças e celebraram o acordo que, todos percebiam, selaria o destino da Polônia e seria motivo de início da Segunda Guerra Mundial na Europa. 

O pacto duraria quase dois anos, com trocas comerciais, algumas desavenças, mas com significado histórico profundo. O historiador Roger Moorhouse (nascido em 1968) fez, em 2014, uma análise do acordo. Alegou que era um aspecto pouco estudado da história contemporânea. Revirou arquivos e consultou jornais para produzir o texto, agora em português: O Pacto do Diabo – A Aliança de Hitler com Stalin 1939-1941 (editora Objetiva, tradução de Berilo Vargas).

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O livro tem narrativa bem construída e traz muitos dados à tona. Foi acusado, por vozes solitárias como o historiador Richard Evans (nascido em 1947), de não pesar com igual medida as atrocidades dos dois lados, o soviético e o nazista. Acho injusto o comentário.  Moorhouse é um reconhecido especialista em Segunda Guerra e transformações na Europa Central no século 20. A diplomacia cínica dos dois regimes totalitários é dissecada com riqueza de detalhes e com novos documentos. Há muita revelação sobre as trocas econômicas. A URSS sofria com falta de engenharia de precisão. A Alemanha suspirava por reservas de petróleo e de outras commodities. Empresas pesadas alemãs receberam enormes encomendas de Moscou.

Os soviéticos reformularam a política de produção de tanques. Com dados novos, demonstra que o fornecimento de grãos forrageiros e legumes para a manutenção da produção de carne na Alemanha foi expressivo. Mesmo existindo o pacto, as negociações eram complexas e envolviam desconfianças. Como os agentes respondiam a dois ditadores muito inclinados a execuções sumárias, os burocratas evitavam tomar decisões com medo de que fossem responsabilizados.

O acordo terminou com a invasão da URSS, em 22 de junho de 1941. Faltavam quase dois meses para o segundo aniversário do Pacto assinado em 23 agosto de 1939. O intervalo tinha garantido a paz que Hitler precisava para retalhar a Polônia, montar sua máquina de morte em campos de concentração, tomar a Bélgica, a Holanda, a Dinamarca, a Noruega e parte da França e ter, no verão de 1941, segurança para romper o acordo com Moscou. O pacto fora diabolicamente brilhante para Berlim; sua ruptura fora um dos maiores erros naquele momento. No fim do mesmo ano, com quase todo o esforço de guerra alemão concentrado nas imensidões russas, os japoneses forçariam a entrada dos EUA ao atacarem o Havaí. Milhões ainda morreriam, todavia o destino do Eixo estava selado. O livro de Roger Moorhouse mostra como devemos dar atenção para o acordo de 1939, pois assim iluminamos a lógica perversa que ditadores montam para construírem seus anseios de poder e de morte. Boa semana para todos.  É HISTORIADOR E ESCRITOR, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
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