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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|O ovo e a galinha

Nesse Dia do Namorados não celebramos apenas os namorados, mas o “enamoramento”, que abre o paraíso na dura realidade da vida

Atualização:

O motivo era banal, embora o assunto fosse por demais complicado. Num gesto generoso, titia serviu ovos cozidos para todos nós, “meninos” ou “crianças”, na grande e lateral varanda da “nossa casa”, no bairro do Ingá, em Niterói. Digo nossa com aspas porque vovô Raul, conquanto fosse um desembargador aposentado e membro da elite do Estado do Amazonas, não deixou nenhuma casa, mochila com dinheiro ou fortuna. Dele herdamos uma certa consciência civilizatória hoje em desuso e franca destruição.

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Foi um acontecimento e uma alegria ter aqueles ovos cozidos que só os adultos saboreavam com cerveja, à nossa disposição – uns oito ou nove meninos – cujas iguarias eram pão com muita manteiga, doce de leite condensado e preciosas moedas de chocolate. 

Estávamos devorando os ovos quando surgiu a questão: Quem vinha primeiro; a galinha ou o ovo?  Ivo – um menino levado, que havia experimentado poucas uvas e nenhuma Eva – respondeu: “A galinha, é claro; é ela quem bota os ovos que estamos comendo!”. Já o Maureca, cujo sonho era ser oficial de Marinha retrucou – com aquela inflexão grave e bíblica dos entendidos em política – “nada disso, quem vem primeiro é o ovo!”. * Passa o tempo e, um dia, num encontro internacional no Instituto de Antropologia Social da Universidade de Nova Caledônia, nos Estados Unidos, num seminário presidido pelo famoso e pioneiro brasilianista Richard Moneygrand, 10 ou 12 profissionais da disciplina do desengano, a tal Antropologia Social que fala daquilo que todos pensam que sabem, mas não sabem e, horrorizados, ficam sabendo que há saberes distintos; discutíamos justamente quem vinha primeiro: se era o indivíduo (com suas paixões e interesses) ou a sociedade (com suas regras e tabus). 

Foi um debate danado até que alguém sugeriu que um termo dependia do outro. Eles surgiam como opostos em certas ocasiões, mas, no fundo, complementavam-se. No fundo, disse o Dr. William Fly, do Imperial College, quem inventava o indivíduo como protagonista era uma situação – logo, a sociedade. 

Seria preciso admitir como é complexo individualizar e quando vivemos o individualismo como um valor, sentimos o peso das éticas e, com elas, o protagonismo implícito da sociedade. A visão de perto nos entrega indivíduos, a distanciada põe sua existência em dúvida.  * O ovo comido como “comida” é mais concreto do que a sua relação com a galinha, com o cozimento e com quem o cozinhou. Somos nós que vestimos roupas, ou são elas que nos vestem? Uma dor de dente fratura o nosso corpo como um todo e chama atenção para uma de suas partes. Para alguns psicólogos, a “dor” é essa consciência aguda de alguma coisa. O sofrimento – como a arte – é uma ruptura com um todo.  * A essa altura vale perguntar, com um velho jornalista, se era ele quem escrevia no jornal ou se era o jornal que nele se escrevia...  * Não posso deixar de assinalar que essa reunião dedicada ao estudo dos elos entre a parte (o indivíduo) e o todo (a sociedade) aconteceu num 12 de junho, uma data transformada pela nossa permanente (mas inconsciente) magia num “Dia dos Namorados”. 

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Quando se fabrica um dia especial ou um momento destacado, continuou o professor Fly, dando substância aos seus argumentos e imediatamente questionando se os feriados (nos quais nos livramos do trabalho como chamado e castigo) não seriam “momentos da sociedade” ou do “todo” impostos aos indivíduos que assim se sentem parte dele. * Horas depois, vi o velho professor Eduard Fox, de Oxford, dando discretamente umas flores a Miss Gloria (apelidada de Miss Delicious), a eficiente secretária do nosso encontro. 

Honrando esse glorioso “Dia do Namorados”, acrescento que nele não celebramos apenas os namorados, mas o “enamoramento”. A maravilhosa fascinação freudiana de uma relação caracterizada pelo abandono de uma consciência em favor de outra. Forma de entrega na qual o corpo se confunde com a alma por meio do coração, como diziam os antigos.

O enamoramento abre o paraíso na dura realidade da vida. Ele dissolve galinha e ovo. Nele, permita-me o leitor, some também a distância entre o menino carente e o velho também carente.

Opinião por Roberto DaMatta
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