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O outro nome do fulano

Drummond era como (quase) todos nós: adorava apelidos, material para muitas crônicas

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Por Humberto Werneck
Atualização:

É um consolo pensar que Carlos Drummond de Andrade, sem prejuízo de sua altíssima poesia, também tinha lá suas manias. O ritual, por exemplo, de pinicar com tesoura o menor papelucho a ser posto fora, em vez de simplesmente rasgá-lo, ou convertê-lo em bola a ser encaçapada no cesto de lixo. Nada disso. No final do dia de trabalho, o poeta abria sobre a mesa uma folha de jornal e, no capricho, convertia a papelada em pedacinhos – para só então produzir uma bola e atirá-la na lixeira, não sem antes consolidá-la com barbante bem atado. Não sei se era isso o que ele tinha em mente, mas o procedimento impossibilitava eventuais investidas de bisbilhoteiros à cata do último rascunho, ainda quente, de mais uma pérola de nosso poeta maior.

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Talvez não se possa chamar de mania, exatamente, outro costume seu, também este numa franja do ofício literário: colecionar pseudônimos de escritores – não tivesse ele próprio, e não só nos começos da carreira, mobilizado cinco dúzias de pseudônimos, que o professor Fernando Py, recentemente falecido, garimparia e poria em livro. Pela vida a fora, Drummond foi coletando informações para uma obra que permanece inédita, o Dicionário de Pseudônimos Brasileiros, cujos alentados originais datilografados jazem na Biblioteca Nacional.

E não foi só. Alguma coisa, por certo, fascinava Carlos Drummond de Andrade no terreno da onomástica, e o levou a recolher também apelidos, tendo, dos anos 1950 aos 70, escrito pelo menos duas dezenas de crônicas sobre o assunto – primeiro, no Correio da Manhã, em seguida no Jornal do Brasil, publicações nas quais, três vezes por semana, ao longo de três décadas, ele pingou milhares de textos, dos quais a maioria (ainda) não chegou a livro.

É o caso de suas crônicas sobre apelidos, tema que, ao contrário do que se passou com os pseudônimos, não o tentou o bastante para dedicar-lhe obra física. Mais de uma vez, jogou a seus leitores, como tentação ao léu, o desafio de organizar uma coletânea de apelidos – algo que, salvo engano, só veio a se concretizar em 2012, quando o professor Claudio Cezar Henriques, da UFRJ, não sei se atraído pelo anzol drummondiano, publicou seu Dicionário de Apelidos dos Escritores da Literatura Brasileira.  Era mais ambicioso do que este o projeto que o poeta não se animou a consolidar em livro. As amostras que renderam crônicas não se limitaram ao universo das letras, interessando-se também por personagens da política, das artes, do esporte, da vida em geral. Numa delas, em setembro de 1960, Drummond ofereceu sua ideia “a algum pesquisador paciente e dotado de senso de humor, menos para compendiar manifestações irreverentes do espírito brasileiro do que como documentário para a história social do Brasil em seus aspectos menores”.

Recheadas de “apelidos, alcunhas, apodos, cognomes, epítetos, nomes de guerra ou o que quer que seja”, suas listas, como seria de esperar, trouxeram fartura de escritores. Certa ocasião, para corrigir equívoco cometido por Alceu Amoroso Lima, que lhe atribuíra a autoria do rótulo “O Bruxo do Cosme Velho”, colado em Machado de Assis, Drummond fez justiça ao verdadeiro autor do achado, o gaúcho Moysés Vellinho. 

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“Carlito”, como era chamado pelos pais e irmãos, não chegou a registrar o “Gordinho Sinistro” com que o humorista Apparicio Torelly, o Barão de Itararé (quem garante é Rubem Braga) etiquetou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nem, como o professor Claudio Cezar, o “Chulé de Apolo” que Oswald de Andrade pespegou no jovem poeta Lêdo Ivo, por ter este lhe aplicado um “Calcanhar de Aquiles do Modernismo”. Mas não deixou de fora o “Apolo de sebo” que José de Alencar cravou em Joaquim Nabuco, com quem polemizava. O “Vovô índio” que Jayme Ovalle criou para José Lins do Rego. Ou, ainda, o “Dr. Progresso” que Sérgio Buarque de Holanda viu grudar-se nele quando, nos anos 1920, dirigiu o jornal O Progresso, em Cachoeiro de Itapemirim. Drummond lembrou ainda que Rui Barbosa, a “Águia de Haia”, foi também “Casmurro” e, nas páginas de um jornaleco do Rio, “Anão Jiboia”. Faltou explicar por que “jiboia”.

Com Drummond, aprendi que a expressão “do tempo do Onça” evoca o capitão português Luís Vahia, governador da província do Rio de Janeiro no século 18, cujos maus modos autorizaram equiparação com o felino em questão. No mundo da música popular, o poeta pinçou o “Metralha” de Nelson Gonçalves, o “Caretano” que o tropicalista Rogério Duarte fez rimar com certo baiano, o “Zunga” que o menino Roberto Carlos carregava em Cachoeiro, o “Devagar” que distinguia Martinho da Vila no curso de contabilidade, o “Cachorrão” de Jair Rodrigues. Dentro das quatro linhas, Drummond desencavou o “Cara de Ovo” de alguém que já era “Tostão”, ele mesmo, seu parente Eduardo Gonçalves de Andrade. Mas nada tão bizarro quanto o “Chico” que o pintor Candido Portinari escolheu para o grande amor de sua vida, a Maria com quem se casou.

E aqueles apelidos que, por sua graça, irreverência ou perversidade, dispensam portador famoso, e que o poeta não contemplou em suas listas? Podemos cuidar desse baú sem fundo, se você colaborar.

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