O olhar generoso de Pierre Verger, em mostra e livro

Celebrando o centenário de nascimento do fotógrafo e etnólogo francês, exposição e livro reúnem centenas de imagens feitas por ele em todo o mundo

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Por Agencia Estado
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Chega a São Paulo a mais completa exposição já realizada de Pierre Fatumbi Verger (1902-1996), com cerca de 600 das milhares de imagens recolhidas por ele nos quatro cantos do planeta. Fotógrafo, etnólogo, mágico, sacerdote ou simplesmente curioso, todas essas definições servem para explicar quem foi este homem que nasceu há 100 anos na França e baiano por adoção - para mencionar apenas aquela localidade, dentre todas as que conheceu, que o conquistou de maneira mais definitiva. E a exposição organizada pela Fundação Pierre Verger dá conta de todas essas fascinantes dimensões de sua personalidade e de sua obra. É possível visitar a mostra, que será inaugurada esta noite para convidados na Galeria do Sesi, em busca da genialidade fotográfica de Verger. Suas imagens são profundamente tocantes, quer aquelas realizadas na primeira fase de suas viagens, quer as do estudo comparativo entre as culturas africanas da Bahia e do Golfo do Benin. Não que Verger fosse um fotógrafo extremamente preocupado com a técnica, com o caráter formal ou estético de sua obra. Ele apenas fotografava. E como: foram catalogados no museu cerca de 62 mil negativos e aí não estão incluídos todos os seus trabalhos, já que muita coisa se perdeu durante a 2.ª Guerra Mundial e supõe-se que outras imagens tenham se perdido ao longo de seus quase 94 anos de existência. Ele, propositalmente, deixou as regras estéticas de lado, explica Alex Baradel, coordenador do arquivo fotográfico da Fundação Pierre Verger, no livro O Olhar Viajante de Pierre Fatumbi Verger, que está sendo lançado simultaneamente com a exposição. Verger "corta cabeças e corpos, fotografa em condições luminosas difíceis, realiza fotos inclinadas, retratos de frente e gosta de vistas tomadas de baixo para cima que, mesmo não sendo muito expressivas, permitem recortar melhor uma silhueta, ressaltar melhor o homem", afirma. Como sintetizou Raul Lody, o curador da exposição, ele apenas "permitiu-se ficar de olho no mundo". Mais do que isso. Sua atitude de espera diante dos fatos, que acabou gerando uma das mais belas imagens da fotografia moderna, deriva de uma atitude de profundo respeito pelo homem. O indivíduo nascido de uma família burguesa não aceitou acomodar-se, rejeitou preconceitos e regras de conduta que não o fizeram feliz (segundo suas palavras) e buscou capturar e eternizar a diversidade humana. Não se trata de um gesto político. Até porque Pierre Verger sempre foi avesso às explicações e não foi sem sofrimento que, após iniciar suas pesquisas etnográficas sobre a cultura negra na África e no Brasil, se viu pouco a pouco obrigado a deixar de lado o ato de captar imagens sem conceitualizá-las para tornar-se um teórico. O rapaz que não havia concluído o colegial tornou-se doutor pela Sorbonne, o mágico da imagem transformou-se em um homem de letras. Mais curioso ainda: o branco, fruto de uma sociedade laica e cartesiana torna-se babalaô (o filho do segredo), tendo sido iniciado ao culto do Ifá, o culto de adivinhação do Benin, em 1952, adquirindo desta forma o nome Fatumbi. Depois que a mãe morreu, ele pôs o pé na estrada e percorreu entre o início dos anos 30 e o final dos anos 40 os cinco continentes. Trocou fotografias por transporte, comida, moradia. Não se submeteu a nenhum comando, a nenhuma urgência de pauta, apesar de ter colaborado para várias publicações. "Ele podia dar-se ao luxo de parar, ficar num lugar, esperar uma luz, uma cena, um sorriso", conta Baradel. Dessa forma, contribuiu para construir o projeto de um mundo mais respeitoso, em que as diferenças não são excludentes, mas apenas fatores de definição de culturas, que muitas vezes se entrecruzam de maneira surpreendente. Nesta seleção de imagens, 70% delas inéditas, há o asiático, o americano, o africano e até o europeu. Além da miscelânea de roupas, costumes e sorrisos, há o diálogo com o outro. Na obra de Verger não estão presentes nem a falsidade dos efeitos de composição - a espontaneidade predomina sempre - nem a invasão de privacidade que parece ser a tônica dos nossos dias. Em seu trabalho é possível constatar, por exemplo, as impressionantes semelhanças entre os povos africano e brasileiro, assim como as profundas diferenças entre as várias regiões deste país continental. Enquanto em cidades novas como Brasília e frias como São Paulo a arquitetura parece devorar o homem, sobrepondo-se a ele de maneira assustadora, as cenas que Verger captou em várias cidades praianas e festivas são de uma alegria contagiante. A mulata sambando em Salvador, a praia carioca fervilhando de gente em 1941, os carnavalescos do Recife dançando frevo ou as mulheres de São Luís trançando palha de coqueiro, tudo isso faz parte de uma imagem de Brasil da qual temos saudade, que não existe mais, ou que nunca existiu. Pelo menos não com toda essa formosura que a lente amorosa de Pierre Verger ajudou a construir. Nada mais justo que a exposição, que já esteve no Rio, circule, passando ainda por outras cinco capitais além de São Paulo (Brasília, Salvador, Recife, São Luís e Belém). A exposição que abre as portas hoje em São Paulo é uma forma de resgatar essa relação de amor de Verger com o Brasil e, acima de tudo, com a Bahia - terra que o andarilho escolheu para descansar. "Amo quase igualmente as duas margens do Atlântico, com um pouco mais de ternura, entretanto, pela boa terra da Bahia", afirmou.

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