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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|O mundo joga com os pés

Da janela da sala vê-se um campinho de beisebol. Não estou em Nova York, defronte o Central Park, mas de volta ao Rio, defronte a Lagoa Rodrigo de Freitas. O campinho, de terra batida, como convém, talvez seja o único de sua espécie em toda a cidade. Quando não está empoçado, uma rapaziada que suspeito brasileira da silva nele bate (& rebate) uma bolinha, com bastão, luva e boné. Já me esforcei um bocado para acompanhá-los e entender como acumulam e perdem pontos, não sem antes ter lido, também em vão, o verbete da Britannica sobre o esporte favorito dos norte-americanos. O beisebol me é impenetrável. Também só aproveitei dele o boné. Não me sinto complexado por achá-lo tão chato quanto assistir a uma partida de dominó (estou devolvendo o que seus aficionados mais implicantes dizem do futebol), e me gratifica a certeza de que não sou um excêntrico nem estou mal acompanhado. Tenho vaguíssima ideia de suas regras, sei distinguir um catcher de um pitcher, conheço de nome vários craques e ídolos do passado, graças sobretudo ao cinema, mas nem incentivado pela literatura superei minha insopitável indiferença a innings e home runs. Pior: desisti de ler um punhado de contos e romances ambientados ou cheios de referências ao mundo do beisebol, mesmo aqueles escritos por autores que admiro, como Philip Roth (The Great American Novel), e me gratificaram em outras ocasiões, como Bernard Malamud (The Natural) e Michael Chabon (Summerland), ou foram bastante elogiados, como Chad Harbach (A Arte do Jogo, traduzido pela Intrínseca). Entre as raras exceções que devorei com gosto, duas obras em que o beisebol mal entra em campo: a Trilogia de Nova York (de Paul Auster) e Submundo (de Don Lillo). Difícil encontrar um intelectual norte-americano que não sinta pelo beisebol o que sentimos pelo futebol. Auster chegou a sonhar com uma vaga no time dos Giants, da qual desistiu para dedicar-se com exclusividade aos home runs literários. John Cheever interrompeu sua entrevista à Paris Review para acompanhar os nova-iorquinos Mets derrotarem os Orioles de Baltimore. Ainda bem que Cheever jamais extravasou a paixão pelo beisebol em sua ficção, que não me canso de ler e reverenciar. Gerações anteriores e posteriores à de Cheever perpetuaram a preconceituosa balela de que o soccer "é coisa de comunista e homossexual", logo "antiamericano", idiotice que o comentarista Jonathan Chait usou como desculpa para reduzi-lo, na Copa de 2006, a "um festival de pontapés sem futuro nos Estados Unidos". Duplo engano. Àquela altura, o esporte que só os norte-americanos insistem em chamar de soccer (para diferençá-lo do festival de trombadas a que chamam de futebol, sem passado, presente e futuro no resto do mundo) já empolgava mais gente na terra de Babe Ruth do que Chait supunha. A cada Mundial, a empolgação aumenta. Promovido por Pelé e popularizado pelo Cosmos, pelas massas de imigrantes que o cultuam desde o berço e pela expansão da TV a cabo e da internet, o "beautiful game" entranhou-se lenta e irreversivelmente na cultura dos gringos. "Virou o passatempo predileto de nossos intelectuais", proclamou Bryan Curtis, na revista eletrônica Slate, sem se referir apenas a Dave Eggers, Robert Coover, Franklin Foer, Matt Weiland e meia dúzia de outros convertidos à soccermania. O New York Times tem dado intensa cobertura à Copa deste ano, Foer já armou seu novo bunker no site da New Republic, o futebol, sorry, yankees, conquistou o planeta. Hoje é fácil acompanhar a World Cup de qualquer cidade norte-americana, mesmo daquelas ainda dominadas pelo beisebol. Bem diferente de quando tive de acompanhar de lá duas frustrantes Copas do Mundo. Foi diante de um telão armado no Cow Palace (Palácio da Vaca) de São Francisco, que, pela bagatela de US$ 50, grana razoável 40 anos atrás, assisti ao baile que a Laranja Mecânica de Cruyff & Cia nos deu em Dortmund, e em três diferentes locais de Nova York festejei, com Lúcia Guimarães, Arnaldo Jabor e Amir Labaki, os triunfos que antecederam nossa derrocada final no Stade de France, em 12 de julho de 1998. Foram, pelas circunstâncias, dois Mundiais memoráveis. Mas não os mais memoráveis de minha longeva convivência com Copas do Mundo. Guardo especiais lembranças da final de 62, no Chile, que nos assegurou o bicampeonato mundial, e do jogo em que a seleção de Portugal, comandada por Eusébio, nos enfiou três gols e nos alijou do resto do torneio de 1966.

Atualização:

Dos quatro gols assinalados na decisão contra a Tchecoslováquia, em Santiago, só pude curtir os dois últimos. Os dois primeiros (Masopust para os tchecos e Amarildo para as nossas cores) me pegaram exercendo a função de improvisado parteiro da gata da atriz Irma Alvarez, a cujo apartamento fora levado por Reginaldo Faria e Sérgio Sanz. Depois subimos a Avenida Copacabana a reboque da fuzarca que se seguiu ao 3 a 1. Já sem Irma, presa às suas obrigações de avó de três ou quatro gatinhos.

Perder os primeiros 20 minutos de uma final de Copa cuidando do parto complicado de um felino alheio talvez seja ainda mais esquisito do que assistir a uma Copa inteira na pátria do beisebol. A melancólica despedida do Brasil da Copa de 66, em Liverpool, me pegou encarapitado no teto de um carrão, a segurar firme a cintura de um cameraman e a dar voltas em torno da Cinelândia. O carrão era de Carlos Heitor Cony, improvisado motorista da pequena equipe montada por Mauricio Gomes Leite para a realização de um documentário sobre Otto Maria Carpeaux, O Velho e o Novo, fotografado por José Carlos Avellar. A intenção era contrastar a prenunciada depressão do povo nas ruas (já havíamos perdido para a Hungria, quatro dias antes) com o desencanto filosófico de Carpeaux, a quem me cabia paparicar e descontrair durante as filmagens. Carpeaux desprezava todos os esportes e é possível que nem Pelé tenha visto jogar. Temos de convir que meu programa na tarde de 19 de julho de 1966 foi mais surpreendente que o da tarde de 17 de junho de 1962. Pelo menos 70 minutos da vitória no Chile consegui acompanhar. Da tunda que os portugueses nos deram, nem um segundo ouvi. E foi melhor assim.

Opinião por Sérgio Augusto
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