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O mundo ficcional em que gira a realidade humana

Com o argentino Jorge Luis Borges, que morreu há 25 anos, a literatura latino-americana perdeu definitivamente seus limites - geográficos, temporais e de gêneros -, abrindo-se para a civilização universal e o novo, sob o signo do fantástico

Por Carlos Granés
Atualização:

Em Gamla Stan, o centro histórico de Estocolmo, um edifício construído em 1722 abriga o restaurante Den Gyldene Freden (A Paz Dourada). O lugar é famoso não só por ser o restaurante mais antigo do mundo e servir pratos suculentos de carne de rena e truta, mas porque o imóvel pertence à Academia sueca. Toda quinta-feira, numa sala austera do andar superior, mobiliada com duas mesas, um lustre de cristal e uma estante verde com 18 taças de acquavit, os acadêmicos se reúnem para jantar, falar de literatura e, como não poderia ser diferente, para debater quem será o próximo prêmio Nobel. Qualquer pessoa que entre nessa salinha, especialmente se for latino-americana, não pode deixar de se fazer uma pergunta. Borges? Se essas paredes falassem, talvez se resolvesse um dos grandes mistérios que rondam a literatura do século 20. Por que um gigante das letras como ele, lido em todo o mundo, capaz de deslumbrar com a magia de suas ficções e deixar uma marca indelével na literatura mundial, foi para o túmulo sem ter recebido um prêmio que, de todos os pontos de vista, merecia?Os procedimentos da Academia sueca são tão escrupulosos e reservados que talvez nunca se responda a essa pergunta. O que se sabe é que Jorge Borges Luis Borges (Buenos Aires, 24/8/1899-Genebra, 14/6/1986) conseguiu levar a arte do relato aos níveis de um Chekhov ou de um Poe. Sua prosa, polida e esmerada, é um dos legados mais ricos que deixou às letras hispano-americanas. Ele foi o primeiro escritor que na América Latina se propôs a economizar a linguagem. Quis evitar parágrafos enfadonhos quando uma ideia podia ser expressa em duas frases. Diferentemente do inglês, o espanhol sempre pareceu uma língua excessiva e sobrecarregada. Mas a meticulosidade e economia de meios que Borges empregou para tecer seus ensaios e contos deram à sua prosa a agilidade e o tino que invejava em autores como Chesterton e Kipling. Em lugar de desenvolver suas ideias em grandes tomos, ele preferiu o conto e o ensaio curto. Esse foi seu gênero, esse foi o reino que dominou e que redefiniu seu anseio. Hoje em dia, qualquer escritor que se vê diante do desafio de escrever um conto tem de se perguntar se tomará o caminho aberto por Borges. Porque foi isso que ele fez: inaugurar uma nova forma de contar ficções que se serviu de tudo - a realidade, a possibilidade, a fantasia, a literatura e a história universal - para explorar as inquietações metafísicas do ser humano.O interesse de Borges pelos problemas abstratos e os enigmas morais o levou a produzir outra das grandes revoluções na literatura latino-americana. Antes que surgissem seus ensaios e contos, a literatura que se escrevia de norte a sul do continente era local, enraizada no contexto imediato dos escritores e carregada de temas e problemas estritamente nacionais. A literatura era gauchesca, indigenista, costumbrista, telúrica: era, em definitivo, refratária às correntes literárias da Europa e da América do Norte, e mais parecia uma vertente da sociologia e da etnologia. Borges rejeitou essa ideia de literatura. Ele o disse com clareza em El Escritor Argentino y la Tradición, um ensaio publicado em 1932. Nessas páginas, ele rejeitou ideias que até então haviam sido atos de fé na América Latina. Por que um autor inglês podia escrever sobre a Índia ou a Dinamarca e um argentino não? Por que os colombianos, os mexicanos ou os brasileiros tinham que limitar seu universo narrativo aos problemas e cenários locais? Borges libertou a literatura latino-americana das constrições geográficas, abrindo-lhe o mundo inteiro e a história da civilização humana, fazendo com que se sentisse ali como em casa e não temesse servir-se de qualquer tema para seus fins criativos. "Nosso patrimônio é o universo", ele disse; e, de fato, depois dele não houve nenhum problema proibido, nenhuma lei que exigisse que o argentino se concentrasse em temas argentinos e o paraguaio em temas paraguaios. Antes de Borges, a literatura era provinciana; depois dele, os escritores se fizeram universais. Foi isso que permitiu escritores como García Márquez e Vargas Llosa tomarem emprestado elementos da literatura anglo-saxônica - Faulkner, Hemingway, Woolf -, das novelas de cavalaria e de Rabelais, de Flaubert e Balzac, de Sartre e Camus, para renovar dos pés à cabeça as letras latino-americanas e elevá-las aos cumes da literatura universal.Borges mostrou que podia ser feito. Desde os primeiros livros de poemas e ensaios inspirados no pequeno mundo de Palermo, seu bairro natal, e em histórias de rufiões e compadritos (valentões) à espreita nas esquinas, Borges deu um salto para os temas universais. Um de seus méritos foi ter convertido os problemas filosóficos e psicológicos mais complexos em maravilhosas peças de ficção capazes de transportar qualquer leitor, de qualquer nacionalidade, a um universo que lhe era a um só tempo distante e próximo. Distante porque Borges privilegiou em seus contos a fantasia e o exotismo, e porque neles havia planetas fictícios, bibliotecas fantásticas, personagens imortais, lugares infinitos, seres de todas as culturas. Próximos porque a todo momento, quer o tema do conto fosse o improvável Aleph ou os labirintos de palavras, ele estava falando da mente humana, de suas faculdades, da forma em que ela assimila e ordena a experiência.Não devemos esquecer que o pai de Borges, além de advogado, foi professor de psicologia, e três vezes por semana comparecia ao Instituto del Profesorado de Lenguas Vivas para dar suas aulas. Em sua biblioteca eram abundantes os livros de William James, Herbert Spence, David Hume e George Berkeley. Eles dividam as estantes com Las Mil y Una Noches e os livros de Algernon Swinburne, John Keats, Percy Shelley, e muitos outros autores ingleses. Essa suculenta biblioteca constituiu o universo de Borges. Os livros foram a maneira que ele encontrou para compensar sua falta de vivências. Porque Borges nunca palmilhou o lodo da realidade. Embora em certas ocasiões tenha deixado clara sua admirável postura contra o nacionalismo, o peronismo e o nazismo, e sua censurável complacência com a ditadura de Aramburu e Rojas e a de Videla, ele nunca se lançou decididamente na aventura jornalística nem nas lutas éticas e políticas próprias do intelectual comprometido. Borges permaneceu entre livros, fantasiando com as mil e uma experiências que se poderiam viver se nossa mente funcionasse de forma diferente. Seus contos se perguntam como seria a vida se não fôssemos limitados pelas categorias do espaço e do tempo, o que ocorreria se fôssemos imortais, como seria nossa vida se não tivéssemos capacidade de esquecimento, o que ocorreria se o que sonhamos pudesse se materializar, o que seria da vida humana se a ficção colonizasse a realidade. Cada ficção é uma aventura psicológica que acaba sendo familiar porque, de alguma forma, põe palavras em intuições e perguntas que qualquer pessoa se fez. Borges foi não só um dos melhores escritores de todos os tempos, como também o mais imaginativo dos exploradores da mente e das obsessões humanas. Essa exploração lhe permitiu ampliar e experimentar com as técnicas narrativas até o ponto de confundir a ficção com o ensaio e a resenha. Muitos romances contemporâneos que exploram esse terreno intermediário seriam impensáveis sem os jogos literários do escritor argentino. Mas o mais significativo de Borges, seu legado mais importante, foi ter mostrado que a ficção também se confunde com a vida real. Seus contos ilustram metaforicamente como a ficção desliza para a vida humana para transformá-la. Depois de Borges nós sabemos que a vida humana não é feita apenas de acontecimentos e realidades, mas também de fantasias, desejos, aspirações e ficções que se tecem sobre as pessoas e as coisas. Não podemos escapar da ficção do mesmo modo que não podemos escapar da realidade. Temos um pé em cada mundo. Nossas vidas se desenvolvem em espaços concretos, reais, rodeados de pessoas de carne e osso, mas a forma como nos relacionamos com tudo isso é mediada por nossas crenças, desejos e expectativas; isto é, por todo o universo de conteúdos mentais que Borges explorou com a precisão de um cientista e o gênio de um poeta.Basta um exemplo para mostrá-lo. Em Las Ruinas Circulares, um homem se entrega a um trabalho absolutamente fantástico: dorme e em sonhos dá vida a um filho, que em seguida faz descer da nebulosa onírica. Apesar de ter aparência real, seu filho não é mais que a projeção de suas fantasias e desejos. O homem teme que alguém descubra sua natureza etérea: "Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem!", ele diz nas últimas frases. No entanto, no final do conto ele descobre que também é uma aparência sonhada por outro homem. Não expressará esse conto fantástico uma realidade vivida por todo ser humano? Não estarão nossas vidas invadidas pelas expectativas, os temores e os anseios dos outros, especialmente de nossos pais? Não nos relacionaremos com aparências e imagens mais que com pessoas reais?Isso devemos a Borges: mostrar que boa parte do tempo, sem que o notemos, sem que o percebamos, nossa vida transcorre entre pessoas de carne e osso que também são ficção. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIKCARLOS GRANÉS, COLOMBIANO, É DOUTOR EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA UNIVERSIDADE COMPLUTENSE DE MADRI E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE LA IMAGINACIÓN - ANTROPOLOGÍA DE LOS PROCESOS CREATIVOS: MARIO VARGAS LLOSA Y JOSÉ ALEJANDRO RESTREPO (CONSEJO SUPERIOR DE INVESTIGACIONES CIENTÍFICAS DE MADRID)

 

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