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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O mundo de Yuval Harari

Com o autor, certezas foram desinstaladas e nossa zona de conforto virou pó

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Atualização:

É sempre uma alegria acompanhar o sucesso de um intelectual como Yuval Harari. O historiador israelense ganhou o público mundial com Sapiens, Homo Deus e, recentemente, 21 Lições para o Século 21. Na obra que o consagrou inicialmente, ele pensou o passado, como o Homo Sapiens dominou o mundo e quais os seus comportamentos. Homo Deus ousou em área tabu para os filhos de Heródoto: o futuro da nossa espécie. Finalmente, com as 21 Lições, Harari colabora para aprimorar uma agenda específica de debates sobre inteligência artificial, redes, ecologia, Estado e tantas outras questões. 

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Qual a base do sucesso das obras? O público em geral parece valorizar duas narrativas distintas em História. A primeira é a de micro-história, livros que tratem de coisas mais isoladas e com detalhes quase biográficos ou anedóticos. Exemplos felizes do primeiro tipo: o italiano Carlo Ginzburg (especialmente com O Queijo e os Vermes), a norte-americana Natalie Zemon Davis (O Retorno de Martin Guerre) e o francês Le Roy Ladurie (Montaillou – Cátaros e Católicos Numa Aldeia Occitana). Da mesma forma, biografias sempre foram o filé do mercado editorial a cargo de historiadores. O fascínio da narrativa em torno de um indivíduo ou de um tema tem relação, sem nada de pejorativo na constatação, com o gosto por um bom romance.

O outro campo, oposto-complementar de sucesso, é a macronarrativa que confira direção e sentido a um recorte amplo. São autores, historiadores ou não, que trazem uma lógica explicativa. Assim brilham/brilharam Paul Kennedy (Ascensão e queda das Grandes Potências) ou Jared Diamond (Colapso e Armas, Germes e Aço). Ao final da leitura, temos um vetor amplo e direto, algo que une o caos dos acontecimentos esparsos e traz tranquilidade ao navegador do oceano fático.

Os livros amplos costumam dar ao leitor uma iluminação. Podem ser imensos e desafiadores como o de Fernand Braudel ao analisar o Mediterrâneo à época de Filipe II, ou mais leves como Sapiens, mas trazem a certeza de um fio condutor que costuma ser benéfico ao bem-estar do nosso cérebro. Não gostamos do aleatório, do fluxo sem ordem do acaso imponderável da história. Amamos o sentido real ou artificial dado pelos autores. 

O que une todos os citados é o bom texto. Escrever bem, com certa tensão narrativa, uso interessante de exemplos e um visível lastro de formação é a chave de muitos, em especial de Yuval Harari. O autor das 21 Lições segue explorando visões amplas, com maior ênfase em trechos subjetivos, como reclamar do marido que não lhe dá atenção na cama em função do celular. A novidade agora é um tom de ensaio assumido sem perder o apelo do embasamento acadêmico. O grande público quer e necessita de ideias boas sem linguagem inacessível, demanda justa que deveria seduzir mais intelectuais.

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O livro é um sucesso e isso me faz pensar se todos compreendem bem o que é dito. Ele balança certas convicções assentadas no grande público. Um exemplo? Harari minimiza o risco do terrorismo na prática e trata da impotência crônica do fundamentalismo. Ao falar do impulso destruidor do Estado Islâmico, por exemplo, lembra que radicais compartilham ídolos em comum com o Ocidente. Os jihadistas são capazes de eliminar todo símbolo histórico religioso pela frente na sua sanha irracional, porém... respeitam o rosto de Benjamin Franklin nas notas de cem dólares localizadas em bancos encontrados. Seriam radicais, porém práticos. 

Iconoclastia é a marca do autor, porque ele fala de narrativas (religião, Estado) e relativiza cada uma de forma inquietante. Os ismos vão caindo página a página, respeitados e imponentes, porém esvaziados da sua pretensão metafísica: Budismo, Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Nacionalismo, Liberalismo, Socialismo, etc. As afirmações do autor israelense sobre o Judaísmo são a mostra de que o bom senso crítico não reconhece identidades tribais. Questões que flutuam na leitura: você realmente é livre? O que seria a educação efetiva para o nosso mundo? Qual o papel da humildade nas relações? Como lidar com fake news? 

O final da obra é surpreendente. O cérebro do leitor foi desafiado em questionamentos imensos. Certezas foram desinstaladas e nossa zona de conforto virou pó. Assim, depois de muita água debaixo da ponte, o autor recomenda a meditação como um dos modelos para nossa consciência e capacidade de enfrentar o mundo multifacetado e desafiador. O próprio Harari destaca que suas duas horas de meditação diária estão na base do seu desenvolvimento mental e mente atilada reconhecida até pelos detratores. Como o pensamento do autor é muito original, intensamente livre e percuciente ao extremo, fica a dúvida se o brilho do historiador nasce da sua inteligência natural, da sua formação brilhante em Israel e na Inglaterra ou, como se insinua, no exercício da meditação Vipassana. Resta ao leitor acessar a imitação que lhe pareça mais eficaz para alcançar a agudeza do cérebro lúcido do autor de 42 anos que faz um imenso sucesso entre o público e os líderes mundiais. Bom domingo para todos nós. 

Opinião por Leandro Karnal
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