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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O mundo como teatro II

Ler Shakespeare é, antes de tudo, ler. Não é passatempo, algo que fazemos para superar tédio ou preencher certo vazio

Atualização:

Existe um recurso largamente usado por best-sellers e blockbusters: a tensão narrativa. Não é um recurso ruim. Grandes autores fizeram da revelação final um guia condutor que prende o leitor/espectador até o fim. A peça Equus, de Peter Shaffer, por exemplo, mantém a plateia especulando o motivo que levaria o jovem Alan Strang ao gesto patológico de cegar cavalos. Shaffer morreu em 2016 e, em meio a muitos prêmios e adaptação para o cinema, nunca foi acusado de superficial ou “mercadológico”. 

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O genial Auerbach, no capítulo 1 da obra Mimesis (A Cicatriz de Ulisses), lembra que há obras que trabalham muito a tensão narrativa por meio de pontos claros e escuros. O melhor exemplo é a Bíblia, especialmente o episódio do sacrifício de Isaac no Gênesis. Outras, como a Odisseia atribuída a Homero, interrompem a linearidade dos fatos para longas digressões. São textos formadores do Ocidente, porém opostos. 

Shakespeare não tem uma clara preocupação de que o leitor fique preso pela tensão dos fatos a seguir. Muitas vezes, como no início de Romeu e Julieta, conta o final nas primeiras linhas: a jovem Capuleto cessará de existir graças ao amor por Romeu. Por que continuar a ver? O homem acostumado ao século 21 acusaria o bardo de spoiler e se retiraria. 

Como Homero, Shakespeare está interessado no exercício do texto imaginativo. Sim, existe um enredo e ele apresenta lances inesperados que temperam tudo. O desencontro entre o emissário do frade e o exilado Romeu conduz ao desenlace trágico. O despertar de Julieta logo após o envenenamento do amado é um coup de foudre que eletriza a plateia. Porém, o central na obra é a linguagem em si, a narrativa, por vezes longa, que torna a fala consciente. A ação existe, os fatos acontecem, há atos e cenas dentro deles; a descrição, o caráter reflexivo de tudo é o que muda nossa maneira de ver e perceber. 

O filme que mais seduz multidões, hoje, é aquele em que a ação é contínua e a imagem domina. Sons, músicas, reviravoltas no enredo, revelações bombásticas e sequências intensas em velocidade alta causam boa impressão no público em geral. A ação eletrizante funciona como açúcar: quanto mais colocamos na dieta, mais nos acostumamos com ele. William Shakespeare oferece uma especiaria pouco tradicional ao nosso paladar e que pode causar estranhamentos fortes. 

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Ler Shakespeare é, antes de tudo, ler. A frase é estranha, mas significa que não é um passatempo, algo que fazemos para superar o tédio ou preencher certo vazio. O inglês de Stratford almeja ampliar nossa consciência numa sucessão de anéis concêntricos que vão conduzindo o leitor a um choque consigo e com sua maneira de ver o mundo. Entram metáforas mitológicas, jogos psicológicos, metáforas em cadeia, metonímias, antíteses e violentas inversões de sentido. Não, querida leitora e estimado leitor, você não precisa voltar aos tempos de escola para identificar cada figura de linguagem ou recurso retórico. Basta você saber que o universo é o da representação mental cada vez mais densa. 

Sim, ajuda saber que quando Hamlet, fantasiando loucura de forma teatral, acusa Polônio de ser um fishmonger, um peixeiro. Ora, Polônio é um áulico cioso da sua dignidade. Chamá-lo de comerciante de pescados é um insulto direto. Mas há outra camada no inglês. Nesse sentido, fishmonger (negociante de peixe) era eufemismo para fleshmonger (negociante de carne, cafetão). Há que se considerar que Hamlet usa a gíria para proxeneta já que Polônio está usando a filha para obter revelações sobre o príncipe. Quando em outra cena, o herdeiro de Elsinore ordena a Ofélia “go to a nunnery”, o público sabia que a palavra implicava duas coisas: convento e prostíbulo. Assim, como Hamlet está atacando a própria ideia de amor como roteiro possível de felicidade, tanto o bordel como o convento são espaços de sublimação do amor, um pela negação do contato físico e outro pelo neutralização gerada pelo excesso. A erudição ajuda muito, e uma edição com boas notas colabora. No ato III, cena II, o diálogo do príncipe com a namorada é tomado de insinuações sexuais e palavras de duplo sentido. A tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça elimina a duplicidade e torna o texto mais pudico. O público do 16 tinha menos escrúpulos e aceitava que o sexo era parte da existência. 

Um filme de ação contemporâneo ou um romance da moda têm o aspecto magnético de lidar com o público-cliente. A base de tudo que é feito ali prevê a fidelização do leitor-observador. O produto precisa agradar para que você fique até o fim, leia tudo, recomende, compre a continuação e seja cativado pela franquia. Nunca achei isso ruim ou negativo. Apenas acho pouco. Ao final de um filme onde são queimados 15 carros a cada cinco minutos, você ficou atento, foi seduzido pelo som-imagem-quase cheiro da explosão e... perdeu uma hora e meia de vida. Nada foi acrescentado, apenas o tempo foi superado. Como toda droga, você precisará de mais explosões no próximo para obter o mesmo efeito. 

Shakespeare não precisa de você, do seu dinheiro, da sua postagem no Instagram com rostinho sorridente! Shakespeare está lá como estava antes da sua bisavó existir e aqui estará quando seu tataraneto exalar o último hálito de vida. Nascido sob Elizabeth I, continua brilhando sob a segunda do mesmo nome, quase cinco séculos depois. Porém, o criador de Hamlet não é arrogante por ser imortal e gênio. Ele apenas diz: esse é o Hamlet, uma chance para você ser ou não ser, tudo depende da sua vontade e capacidade de escalar a montanha da consciência. Vai encarar? Boa vida para todos nós! 

Opinião por Leandro Karnal
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