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O multiartista e sua obra nada confortável

Por Roberta Pennafort
Atualização:

"Árvores do sul dão um fruto estranho/ Sangue nas folhas e sangue na raiz/ Corpos negros balançando sob a brisa do sul/ Um fruto estranho pendurado nos álamos." A letra de protesto contra o racismo, tornada sucesso por Billie Holiday no fim dos anos 30, inspirou o multiartista paulistano Nuno Ramos, que além de pegar seu título, Fruto Estranho, emprestado à nova exposição, no Museu de Arte Moderna do Rio, aberta ao público a partir de hoje, a colocou para tocar junto à sua obra principal, de mesmo nome.Rasgando dois troncos de flamboyants de seis metros de altura, já sem vida, estão dois aviões monomotores. Toda a superfície é recoberta por camadas e camadas de sabão. Das asas, pende o sumo do fruto estranho: gotas de soda cáustica. Além da canção, um poema do russo Aleksandr Pushkin sobre uma árvore venenosa também o influenciou."O sabão naturaliza o acidente, fossiliza, parece alguma coisa mais antiga", disse Nuno na última sexta-feira, em meio ao trabalho de montagem, numa brevíssima pausa para um cafezinho e um copo d"água - durante a qual ainda aproveitou para acertar, pelo telefone, detalhes da obra que apresentará na Bienal, semana que vem.Sujo, lanhado, a tensão estampada no rosto, ele circulava entre as mais de 30 pessoas que se revezavam no "regar" das árvores, do alto de andaimes, no salão monumental do MAM - foi mais de 1,5 tonelada de sebo animal, vertido em sabão pelo contato com soda cáustica em caldeirões a 80 graus.No mezanino, outro grupo socava areia (foram trazidas de uma fundição mais de oito toneladas). É lá que está a obra Verme, composta por duas esferas de 3,4 metros de altura cuja superfície, de fibra de vidro, é revestida de areia preta. De dentro delas, são projetados dois filmes na parede, também de autoria de Nuno, que é filósofo e conquistou reconhecimento por sua vertente escritor (o último livro, Ó, conjunto de "narrativas entre a poesia e o pensamento", venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2009)."Cuidado com o pó carvão fuligem pedaços de corpos sólidos cadáveres antigos moídos lentamente vão pousando frutos homens árvores bichos mortos despedaçados em pequenos fragmentos...", diz o texto para dois atores de um deles. Outro vídeo é uma comédia: um filme pornográfico do qual participam músicos tocando choros conhecidos.É uma das oposições que ele propõe: o sexo explícito e o choro - "nada é confortável" no trabalho de Nuno, como aponta o texto da curadora da exposição, Vanda Klabin. "As suas operações estéticas aderem decididamente a contradições e ambiguidades", "nos confrontam, propõem dilemas".Diálogo. Também no mezanino está o Monólogo para Um Cachorro Morto: cinco lápides verticais, com um espaçamento entre uma placa de mármore e outra, por onde "passa" um texto. É a peça "menorzinha". "Em geral penso em escala grande. Este espaço do MAM puxou para uma verticalidade nova", conta Nuno. "As obras estão relacionadas. É como se aquele sebo tivesse saído desse cachorro."

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