O milagre rítmico de Ra

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Por Roberto Nascimento
Atualização:

Em menos de dez minutos, a magistral Sun Ra Arkestra vai de improvisos livres, tais como um zoológico em chamas, a pulsações calcadas na tradição das swing bands dos anos 30. São quarenta anos de história sintetizados sem a menor parcimônia ou pretensão, exaltando o DNA africano que jaz ao cerne de todas as encarnações do gênero. A épica apresentação da banda neste sábado à noite, no Sesc Pompeia, constatou essa polivalência continuamente, com o foco em um balanço brejeiro, que transformou a choperia em um vertiginoso bailão de carnaval. As fantasias dos integrantes, faraós, ciclopes e sacerdotes, não poderiam ser mais pertinentes.O show começou com um improviso massivo, ao centro de qual o líder da banda Marshall Allen (herdeiro da batuta depois da morte de Sun Ra, em 1993) tocava um sintetizador portátil no formato de um dedetizador venusiano, que oscilava como uma sirene defeituosa. Uma deixa do maestro Allen e a banda embarca em um suingue arrastado, direcionado por figuras rítmicas Basieanas ao piano. É difícil exagerar ao descrever a beleza de se assistir a uma orquestra tão fundamental para o desenvolvimento do jazz abstrato encarar o repertório tradicional com tanto respeito e contundência. Os arranjos são tocados com disciplina, mas nunca levados a sério. Lá pela metade da música, um trompete cacareja, um trombone muge e aquele suingue malandro, gloriosamente bagunçado, engrossa o caldo para nos lembrar que se tratam de veteranos da vanguarda disfarçados de tradicionalistas. O delírio de Ra se perpetuou noite a dentro. A banda tocou Stars Fell on Alabama com lirismo displicente, como uma banda de casamento em fim de festa: trilha de um romance bêbado que sobrevive ao passar do tempo. Tocou bop. Tocou um shuffle alucinante, um samba mandrake, fez um trenzinho pelo salão. O saxofonista Knoell Scott pulou do palco, fez paradas de mão, jingou capoeira e caiu no batuque. Momentos sagrados e profanos, abençoados por catarse rítmica, que nunca serão esquecidos pelos presentes: A Arkestra de Ra é nada menos que um milagre musical.

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